-Este discurso foi originalmente proferido em 5 de Janeiro de 2009 em Bihar, India. Muitas das mulheres cujas situações são evocadas aqui compareceram ao evento, algumas falaram também. O texto memoravelmente aprendeu de apresentações posteriores em Joanesburgo, Buenos Aires, Basel, Cambridge (U.K), entre outros. Whitney Russell foi útil e perspicaz. Marijn Heemskirk, Nadia Ahmad e Rasmus Naey ajudaram com problemas de pesquisa específicos. A excepcional assistência à pesquisa de Lisa Cardyn foi essencial para a versão publicada. Max Waltman forneceu as pesquisas e tradução dos materiais Suecos e Noruegueses. Desde 1980 foram as mulheres na prostituição quem mais me ensinaram. O tempo para terminar a escrita e a pesquisa final foram apoiados em parte pela “Diane Middlebrook e Carl Djerassi Visiting Professorship” em Estudos de Gênero na Universidade de Cambridge no início de 2011. A Biblioteca de Direito da Universidade de Michigan, como sempre, foi indispensável ao trabalho.
*O texto possui uma série de notas de roda pé, a maioria contendo as referências do que é trazido no texto. As notas são enormes e não traduzirei, até porque se a pessoa não souber inglês para ir atrás da referência completa depois de nada adianta eu traduzir os títulos, porém tudo que é dito é referenciado e pode ser conferido no texto original*
PS: Sempre que você ver asteriscos no texto são inserções explicativas minhas e não originais
PS 2: Passei o arquivo para PDF que facilita a leitura porém facetruque não deixa compartilhar. Posso mandar inbox se alguém preferir.
Ninguém defende o tráfico. Não existe uma posição pró-tráfico sexual assim como não existe uma posição pública pró-escravidão para o trabalho hoje em dia. A questão aqui é definir estes termos para que nada que alguém defenda fique mascarado. É difícil achar grandes defensores da desigualdade também, apesar de sua definição legal também ser moldada por práticas existentes que os poderosos querem manter. A prostituição não é assim. Algumas pessoas são pró, afirmativamente a apóiam. Muitas mais acham que é algo politicamente correto tolerar e se opõem a fazer qualquer coisa efetiva a respeito dela. A maioria acredita que, se não exatamente desejável, a prostituição é necessária ou inevitável e não prejudicial. Estas visões sobre prostituição cercam qualquer debate sobre tráfico sexual, seja a prostituição distinguida do tráfico ou vista como intrínseca a ele, seja vista como uma forma de liberação sexual ou entendida como seu exato oposto, sua negação. O debate subjacente a realidade, e sua relação com a desigualdade, se intensifica sempre que fazer algo efetivo sobre prostituição ou tráfico é considerado.
Onde quer que você esteja no mundo, o debate, e geralmente a lei também, é organizada por cinco distinções morais subjacentes que dividem aquilo que é muito ruim daquilo que não é tão ruim assim. A prostituição com adultos é distinguida da de crianças, a no espaço privado da do espaço público, legal de ilegal, voluntária de forçada, e prostituição de tráfico. Prostituir crianças é sempre ruim para crianças; prostituir adultos não é sempre ruim para adultos. Prostituição no espaço público pode ser pesada; no espaço privado é menos. Prostituição ilegal tem problemas que a legalidade resolve. Prostituição forçada é ruim; prostituição voluntária pode ser não tão ruim. Tráfico é realmente, realmente ruim. Prostituição, se voluntária, privada, legal e adulta pode ser uma vida tolerável para algumas pessoas. Mensuradas contra os fatos do mercado sexual, estas supostas distinções emergem como majoritariamente ilusórias, ocupando invés pontos de ênfase na convergência contínua comum e com sobreposição entre as dimensões. Estas distinçõs morais são reveladas como ideológicas, com consequências reais para a lei, a política e a cultura.
Através dos países, as posições fundamentais neste debate – de alguma forma polarizando, porém este debate já é significativamente polarizado – são o modelo do trabalho sexual e a abordagem da exploração sexual. Quando a prostituição é chamada pela terminologia de “trabalho sexual”, ela geralmente é entendida como a profissão mais antiga do mundo, culturalmente universal, consensual pois paga, estigmatizada pois ilegal, um trabalho como outro qualquer ao qual este reconhecimento é negado, amor em público, uma forma de libertação sexual. Trabalhadoras sexuais estão expressando o que seus acadêmicos advogam com a terminologia “agência”. Dos muito significados que este jargão escorregadio que ninguém parece considerar necessário definir possui, agência aqui parece significar escolher livremente, ativamente empoderador, decidir entre oportunidades na vida, afirmar-se de forma decidida e assertiva, lutar contra as forças da feminilidade, resistir a esteriótipos moralistas. Alguns dos que tomam esta visão enxergam a prostituição como uma expressão de agência, algumas vezes potencialmente, senão sempre, como uma modelo de igualdade sexual. As atrizes agentes, as trabalhadoras sexuais, em sua maioria mulheres, controlam a interação sexual, são compensadas pelo que geralmente é esperado das mulheres de graça, e tem vidas independentes e sexo anônimo com muitos parceiros – comportamentos geralmente monopolizados por homens, logo libertadores para mulheres. Algumas mulheres graduam-se ao nível ainda mais alto do papel masculino de vender outras mulheres sexualmente para homens – o que estreita os laços de irmandade, mas talvez menos do que quando mulheres que nunca fizeram e nunca faram parte da indústria do sexo efetivamente defendem cafetões.
Em contraste, a abordagem de exploração sexual enxerga a prostituição como a opressão mais antiga existente, tão generalizada quanto a institucionalização da desigualdade sexual da qual é analisada como pedra fundante. Prostituta, o pronome, é entendida como forma de enganosamente equacionar o que essas pessoas são com o que está sendo feito com elas; a forma do verbo do particípio passado, *prostituída*, em contraste, acentua as outras pessoas e forças sociais que agem sobre ela. Baseado em informações das próprias mulheres, observa-se que mulheres na prostituição são prostituídas através de escolhas impedidas, opções restringidas, possibilidades negadas. Apesar do escopo total e prevalência dos arranjos da prostituição, com todas suas variedades de sexo transacional, não serem conhecidas, o uso deste termo reflete uma avaliação de informações consideráveis sobre a indústria do sexo, e não uma atribuição a priori do status de vítimas. Prostituição aqui observa-se ser um produto da falta de escolha, um recurso daquelas com menos opções ou com nenhuma, quando tudo mais falha. A coerção por trás, física entre outras, produz um setor econômico de abuso sexual, cujos lucros maiores vão para terceiros. Nestas transações, o dinheiro coage o sexo invés de garantir o consentimento, fazendo da prostituição uma prática de estupro em série. Nesta análise, não há, nem pode haver, nada de igual a respeito dela. Pessoas prostituídas pagam por sexo pago. Os compradores não pagam pelo que eles tiram ou levam. É isto, e não a ilegalidade, que majoritariamente contabiliza pelo estigma da prostituição. As pessoas na prostituição, nesta visão, estão erroneamente ligadas ao estigma que deveria na realidade pertencer aos seus exploradores.
Cada entendimento possui uma abordagem legal correspondente. A abordagem do trabalho sexual favorece a descriminalização através de todas as fronteiras com várias formas de legalização, geralmente com alguma regulação estatal, as vezes começando com a sindicalização. Seu objetivo é remover as sanções criminais de todos os atores da indústria do sexo para que a prostituição seja tão legítima quanto qualquer outro modo de vida. A Holanda, Alemanha, Nova Zelândia, Victoria na Austrália, assim como dez municípios de Nevada nos EUA, adotaram versões dessa abordagem, apesar de alguns estarem voltando atrás.
A abordagem da exploração sexual busca abolir a prostituição. A melhor forma de dar fim a esta indústria é debatida. Mas criminalizar os compradores – a demanda – assim como os vendedores (cafetões e traficantes de pessoas), enquanto se elimina qualquer status de criminalidade para as pessoas na prostituição – as vendidas – e promover junto a elas serviços de auxílio e treinamento em outras formas de geração de renda de sua preferência é a abordagem pioneira na Suécia, Islândia, Noruega, e mudanças recentes no Reino Unido apontam para esta direção. *Desde que o texto foi publicado Canadá, França e Irlanda do Norte também adotaram esta abordagem*. Movimentos recentes na África do Sul assim como na Coréia do Sul expressamente criminalizam os compradores, uma lei em Israel e o debate no parlamento Escocês envolvem passos em linhas similares.
Para o modelo Sueco, tão crucial quanto criminalizar os compradores e reforçar essa proibição é descriminalizar as pessoas prostituídas, o que parece ainda mais difícil de atingir. Em uma lista crescente de jurisdições, o modelo Sueco é uma iniciativa que, tendo se mostrada promissora, é crescentemente favorecida por abolicionistas na primeira e prática vanguarda deste movimento. Cada pessoa que confronta este assunto decide qual abordagem melhor reflete a realidade conhecida e experienciada e melhor promove o mundo em que queremos viver. Mas além de preferências, compromissos, valores e políticas, cada posição pode ser mensurada em relação as evidências do que conhecemos sobre a indústria do sexo, incluindo condições de entrada, realidades do tratamento e possibilidades de saída.
Em todos os lugares, pessoas prostituídas são majoritariamente pobres, na verdade normalmente destituídas. Não há discordância quanto a este fato. Necessidade financeira é a razão mais frequentemente mencionada pelas pessoas na prostituição para estarem no mercado do sexo. Tendo entrado devido a pobreza, quase ninguém sai da pobreza pela prostituição. Elas tem sorte se saírem dela com vida, dadas as taxas de mortalidade. Não é incomum para as mulheres na indústria se afundarem ainda mais na pobreza e nas dívidas. Na India, não apenas existem poucas se é que alguma opção para começo de conversa, com senhorios que as mantêm em casas que cobram valores de aluguel exorbitantes, tiram grandes partes dos ganhos delas e se recusam a deixá-las sair da casa ou fazer qualquer outra coisa, apesar de que elas fariam e manteriam mais dinheiro enchendo tanques em postos de gasolina. Desproporcionalmente, pessoas na prostituição são membros de grupos sociais racializados em desvantagem ou castas mais baixas. Em Vancouver *Canadá*, mulheres prostituídas são mulheres da Primeira Nação em números que excedem e muito suas proporções na população geral. *Primeira Nação são etnias aborígenes/indígenas como Inuit e Métis*.
Na Índia, apesar do sistema de castas ser ilegal, ainda existem castas prostituídas. Mulheres membros da casta Nat, por exemplo, são selecionadas para serem prostituídas por homens em suas famílias; é esperado que homens desta casta prostituam mulheres para homens de castas mais altas. Como estes exemplos sugerem, a estrutura de quem está na prostituição frequentemente deriva do colonialismo e persiste após ele. Ninguém escolhe nascer na pobreza ou ficar na prostituição para permanecer pobre. Ninguém escolhe o grupo racial ou casta na qual se nasce. Nenhum país escolhe ser colonizado ou as patologias sociais pós-coloniais que tão frequentemente organizam esta indústria. Estas circunstâncias, das evidências não contestadas de quem pessoas prostituídas majoritariamente são, mais poderosamente determinam quem é usada nesta indústria.
Estas circunstâncias não são escolhidas por nenhuma delas.
Outro fator comumente global relativo a prostituição – outro que também não há contestação – é que pessoas geralmente entram na prostituição quando são jovens, muitas vezes bem abaixo da idade de maioridade. E a idade de entrada pode estar decaindo. A maioria das mulheres e meninas que conheci na India começaram a ser prostituídas aos 10 anos. Esta não é uma idade onde você está plenamente em poder para fazer uma escolha para o resto de sua vida. Não é uma idade onde, se você decida não deixar um membro familiar ou outro adulto fazer algo a você, você tem muito poder para impedi-lo. Na maioria dos países onde pessoas prostituídas foram estudadas com alguma profundidade, abuso sexual infantil anterior a entrada na prostituição é uma pré-condição geralmente presente.
Em muito lugares, incluindo os Estados Unidos, você raramente encontra uma mulher na prostituição que não foi sexualmente ou fisicamente abusada antes, frequentemente dentro do seu círculo íntimo. Na India, as mulheres me contaram que seu primeiro abuso sexual – o período da sua primeira experiência sexual – ocorreu na prostituição, lembrando, aos 10 anos de idade. Se resistissem ali ou depois, elas me contaram que sofriam estupros coletivos e tortura. Dependendo, parece, de circunstâncias sociais e culturais – nós realmente não sabemos o que causa a variação cultural na prevalência e incidência de abuso sexual na infância, ou mesmo certeza se há variação – crianças podem ser sexualmente abusadas de forma anterior a prostituição, ou pode ser simplesmente socialmente presumido que uma vida de abuso sexual é o destino delas. Nesta conexão, castas funcionam na India como abuso sexual funciona em outros locais do mundo onde é documentado: te diz para o que você serve. Em Calcutá, dezenas de garotas por volta dos 13 anos alinham-se nas ruas das “zonas vermelhas” que visitei.
Traduzido por Ana Beys