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Auto-definição

Uma das questões mais constrangedoras que transsexuais, e, em particular, “feministas lésbicas” transsexualmente construídas, fazem é a questão da auto-definição — o que é ser mulher, o que é ser feminista lésbica? Mas, é claro, eles colocam a questão em seus próprios termos, e nós é que temos que respondê-la. Os homens sempre fizeram estas grandes questões, e esta questão, no verdadeiro sentido fálico, é imposta a nós. Quantas estudantes mulheres escrevendo sobre um tema feminista fraco como “As Mulheres Deveriam Ser Motoristas de Caminhão, Engenheiras ou Operadoras de Escavadeiras?” e coisa do tipo têm escrito nas margens de seu trabalho um rabisco de um professor homem: “Mas quais as reais diferencas entre homens e mulheres?” Os homens, claro, têm definido as supostas diferenças que vêm mantendo as mulheres longe de tais trabalhos e profissões, e as feministas têm gasto muita energia demonstrando como estas diferenças, se realmente existem, são primeiramente o resultado da socialização. Contudo, há diferenças, e algumas feministas se deram conta que essas diferenças são importantes pois brotam da socialização, da biologia, ou de toda a nossa história como mulher existindo em uma sociedade patriarcal. O ponto é, entretanto, que a origem dessas diferenças provavelmente não é a questão importante, e provavelmente nunca saberemos a resposta completa a ela. Ainda assim somos obrigadas a tentar respondê-la de novo e de novo [1].

Transsexuais, e “feministas lésbicas” transsexualmente construídas, nos obrigam novamente a responder estas questões antigas reelaborando-as de um jeito novo. E assim feministas debatem e se dividem porque continuamos focando nas questões do patriarcado sobre o que é ser mulher e o que é ser uma feminista lésbica.

É importante que nós percebamos que estas podem muito bem ser “não-questões” e que a única resposta que podemos dar a elas é quenós sabemos quem somos. Nós sabemos que somos mulheres que nasceram com cromossomos e anatomia feminina, e que sendo ou não socializadas para sermos a chamada “mulher normal”, o patriacado tem nos tratado e vai nos tratar como mulheres. Transsexuais não têm tido esta mesma história. Nenhum homem pode ter essa história de vida de ter nascido e ter sido situado nessa cultura como uma mulher. Ele pode sim ter tido em sua história a vontade de ser uma mulher ou de agir como uma mulher, mas essa experiência de gênero é a de um transsexual, não a de uma mulher. Cirurgias podem dar os órgãos femininos internos e externos artificiais, mas não podem lhe conceder a história de ter nascido uma mulher nesta sociedade.

Mas e as pessoas que nasceram com órgãos sexuais ambíguos ou com anomalias cromossômicas que os põem na situação de serem biologicamente interssexuais? É preciso notar que praticamente todos eles são alterados cirurgicamente para se tornarem machos ou fêmeas anatomicamente e são criados de acordo com a identidade e o papel de gênero social que acompanha seus corpos. Pessoas cuja ambiguidade sexual é descoberta mais tarde são alteradas conforme têm sido seu gênero de criação (masculino ou feminino) até aquele momento. Então, aqueles que foram alterados logo depois do nascimento têm a história de praticamente terem nascido como homens ou mulheres, e aqueles alterados tardiamente têm seu corpo cirurgicamente conformado à sua história. Quando e se submetem às mudanças cirúrgicas, eles não se transformam no sexo oposto depois de uma longa história atuando e sendo tratados de forma diferente.

Ainda que a literatura popular a respeito do transsexualismo dê a entender que a Natureza tenha cometido erros em relação aos transsexuais, na realidade é a sociedade que cometeu erros, produzindo condições que criam a divisão transsexual entre corpo/mente.

Enquanto as pessoas interssexo nascem com anomalias cromossômicas ou hormonais, as quais podem ser relacionadas a certas disfunções biológicas, o transsexualismo não é um problema desta ordem. A linguagem da “Natureza comete erros” só serve para confundir e distorcer o assunto, tirando o foco do sistema social, que é ativamente opressivo. Essa linguagem é bem sucedida em culpar uma “Natureza” amorfa que é feita para parecer opressiva e é convenientemente passível de dirigir controle/manipulação através de instrumentos como hormônios e cirurgias.

Ao falar da importância da história para a auto-definição, duas questões devem ser feitas. Uma pessoa deve querer mudar sua história pessoal e social e, em caso positivo, como essa pessoa deve mudar essa história de forma mais honesta e integral possível? Em resposta à primeira questão, qualquer um que tenha vivido em uma sociedade patriarcal precisa mudar sua história pessoal e social a fim de ter um caráter próprio. Devemos ser agentes de mudança de nossa própria história. Mulheres que são feministas obviamente querem mudar partes de sua história enquanto mulheres nesta sociedade; alguns homens que estão honestamente lidando com questões feministas querem mudar suas histórias enquanto homens; e transsexuais desejam mudar suas histórias ao quereremser mulheres. Ao sublinhar a importância da história enquanto fêmeas para a auto-definição do sexo feminino, não estou defendendo uma visão estática desta história.

O que é mais importante, no entanto, é como alguém muda sua história pessoal da forma mais honesta e integral possível se essa pessoa quer romper com a opressão dos papéis sexuais. Homens não-transsexuais que desejam lutar contra o sexismo devem assumir uma identidade de mulher e/ou de feminista lésbica enquanto mantém sua anatomia masculina intacta? Por que homens castrados deveriam tomar para si estas identidades e serem aplaudidos ao fazerem isso? Em que medida negros devem aceitar brancos que passaram por mudanças medicalizadas de cor de pele e, no processo, afirmaram que não apenas têm corpo de negro, mas alma de negro? Um transsexual pode se auto-definir como “feminista lésbica” só porque ele quer, ou esta auto-definição em particular procede de certas condições próprias da biologia e da história do sexo feminino? As mulheres adotam estas auto-definições de feministas e/ou de lésbicas porque esta definição realmente procede não apenas do fato de ter nascido com cromossomos XX, mas também de toda uma história do que ter nascido com estes cromossomos significa nesta sociedade.

Os transsexuais seriam mais honestos se lidassem com sua forma específica de agonia de gênero que os inclina a quererem uma operação transsexualizante. Essa agonia de gênero provêm do fato de ter nascido com cromossomos XY e querer ter nascido XX, e da história de vida particular que produz este tipo de aflição. O lugar para lidar com este problema, no entanto, não é na comunidade de mulheres. O lugar para confrontar e resolver isto é entre os próprios transsexuais. As pessoas devem poder fazer escolhas em relação a quem querem ser. Mas devem poder fazer qualquer tipo de escolha? Uma pessoa branca deve tentar se tornar negra, por exemplo? Essa é uma questão moral, que trata basicamente da validade de tal escolha, não da possibilidade dela ser feita.

Uma pessoa deve poder fazer escolhas que camuflam para os outros certas facetas de nossa existência que os outros têm direito de saber — escolhas que se alimentam das energias dos outros, e reforçam a opressão?

Jill Johnston comenta que “muitas mulheres estão dedicadas a trabalhar pelo ‘homem reconstruído’” [2]. Isso normalmente significa mulheres gentil ou fortemente estimulando seus homens a comportamentos e ações andróginas. Mulheres que aceitam estas “feministas lésbicas” transexualmente construídas dizem que estes homens são realmente “reconstruídos” no mais básico sentido que as mulheres podem esperar — isto é, eles pagaram com suas bolas para lutar contra o sexismo. Em última análise, porém, o “homem reconstruído” se torna a “mulher reconstruída” que obviamente se considera um igual e uma semelhante às mulheres genéticas em termos de “mulheridade”. Um transsexual expressou abertamente que ele sentia que homens transsexuais cirurgicamente construídos como mulheres ultrapassaram as mulheres genéticas.

Mulheres genéticas não podem possuir esta coragem muito especial,
brilho, sensibilidade e compaixão — e visão geral — derivada da
experiência transsexual. Livre das amarras da menstruação e da
maternidade, mulheres transsexuais são obviamente muito superiores às
genéticas em muitos sentidos.
Mulheres genéticas estão se tornando obsoletas, o que é óbvio, e o
futuro pertence às mulheres transsexuais. Nós sabemos disso, e talvez
algumas de vocês suspeitem disso. Tudo o que vocês têm é sua
“habilidade” de ter filhos, e num mundo onde haverá 6 bilhões
chorando por comida no ano 2000, essa é uma qualidade negativa. [3]

Em última análise, as mulheres devem se perguntar se “feministas lésbicas” transsexualmente construídas são nossas semelhantes. Eles são iguais a nós? Questões sobre igualdade geralmente se centram em igualdade proporcional, como “salário igual para trabalho igual”, ou “direitos iguais de saúde”. Não me refiro a igualdade nesse sentido. Em vez disso, uso o termo igualdade para dizer: “como em qualidade, natureza ou status” e “capaz de satisfazer as exigências de uma dada situação ou de uma dada tarefa”. Nestes sentidos, transsexuais não são iguais a mulheres e não são nossas semelhantes. Eles não são nem iguais às mulheres nem nossos semelhantes. Eles não são iguais nem em “qualidade, natureza ou status” nem são “capazes de satisfazer as exigências de uma situação” de mulheres que passaram sua vida toda vivendo como mulheres.

Jill Johnson escreveu sobre feministas lésbicas: “A essência da nova definição política é o agrupamento de semelhantes. Mulheres e homens não são semelhantes e muitas pessoas duvidam seriamente se já fomos ou se algum dia poderemos ser” [4]. Transsexuais não são nossos semelhantes em virtude de suas histórias.

É talvez nossa desconfiança do homem como agressor biológico que
continua nos trazendo de volta à necessidade política do poder pelo
agrupamento de semelhantes. Apesar de ainda estarmos virtualmente
impotentes, é só por constantemente aderirmos a este difícil princípio de
poder inerente em semelhantes naturais (os homens afinal têm
demonstrado bem o sucesso deste princípio) que as mulheres vão
eventualmente atingir uma existência autônoma [5].

Os transsexuais não demonstram o tipo comum de agressão fálica. Em vez disso, eles violam os espaços das mulheres tomando para si os órgãos femininos artificiais. A “feminista lésbica” transsexualmente construída se torna um agressor psicológico e social da mesma forma.

“Feministas lésbicas” transsexualmente construídas desafiam as mulheres a preservar uma existência autônoma. Sua existência dentro das comunidades de mulheres basicamente atesta a ética que diz que mulheres são incapazes de viverem sem homens — ou sem o “homem reconstruído”. A forma que as feministas acessam e encaram esse desafio afetará o futuro de nosso movimento genuíno, nossa auto-definição e nosso poder de existência.

No final das contas, “feministas lésbicas” transsexualmente construídas seguem a mesma tradição das “lésbicas” construídas pelos homens nos pôsteres centrais da Playboy. De vez enquando, aPlayboy e outras revistas semelhantes apresentam uma “Safo pictórica” [6]. Recentemente, os homens fotógrafos entraram no mercado editorial retratando pseudolésbicas em todos os tipos de posições, vestimentas e contextos que só poderiam ser fantasiados pela mente de um homem [7]. Em resumo, a maneira como as mulheres são retratadas nessas fotografias imitam as poses de homens manipulando mulheres. Os homens produzem o amor entre “lésbicas” da forma como querem que seja e de acordo com os seus próprios cânones de como eles acham que deveria ser.
“Feministas lésbicas” transsexualmente construídas fazem parte dessa tradição de propaganda pseudolésbica. Ambas a pseudolésbica da Playboy e a pseudolésbica transsexual espalham a imagem “correta” (leia-se, “definida pelos homens”) da lésbica, que é filtrada para a consciência do público através da mídia como sendo verdadeira. Mutilando a verdadeira auto-definição de lésbica, os homens moldam sua imagem/realidade de acordo com a sua própria. Como Lisa Buck comentou, o transsexualismo é o verdadeiro “o Verbo se fez carne!” [8].

“Feministas lésbicas” transsexualmente construídas tentam funcionar como criadores da imagem das feministas lésbicas — não apenas para o público em geral, mas também para a comunidade das mulheres. Seus disfarces de lésbicas são filtrados na consciência das mulheres através da mídia feminista como sendo “a coisa real”. A tragédia final de tal paródia é que a realidade e a auto-definição de feministas lésbicas se torna mutilada nas próprias mulheres. Feministas lésbicas que aceitam “feministas lésbicas” socialmente construídas como seus outros eus estão mutilando sua própria realidade.

As várias “raças” de mulheres que a ciência médica consegue criar são infinitas. Há mulheres que estão hormonalmente dependentes em doses contínuas de terapias de reposição de estrogênio. Tais terapias supostamente irão garantir à elas uma nova vida de feminilidade eterna [9]. Há mulheres histerectomizadas, purificadas de seus órgãos “potencialmente letais” por motivos “profiláticos” [10]. Finalmente, há a “she-male” — o homem transsexual cirurgicamente construído como mulher. E o desdobramento dessa “raça” é a “feminista lésbica” transsexualmente construída.

Todos estes eventos apontam para o papel particularmente instrumental que a medicina tem desempenhado no controle das mulheres desviantes. O “Império Transsexual” é um última análise um império médico, baseado no modelo médico patriarcal. Este modelo médico forneceu um “dossel sagrado” de legitimações para o tratamento e a cirurgia transsexualizante. Em nome da terapia, este modelo medicalizou questões morais e éticas da opressão dos papéis sexuais, apagando assim seu significado mais profundo.

[1] Um paralelo com a questão do aborto, que pode ser notado neste contexto. A questão-chave, perguntada pelos homens há séculos, é “quando a vida começa?” Esta questão é feita pelos homens em seus termos e em seus territórios, e é essencialmente irrespondível. As mulheres têm se torturado tentando respondê-la e, dessa forma, não fazemos e nem mesmo desenvolvemos nossas próprias questões sobre o assunto.
[2] Jill Johnson, Lesbian Nation: The Feminist Solution (Nova York: Simon & Schuster, 1973), p. 180.
[3] Angela Douglas, Letter, Sister, Agosto-Setembro de 1977, p. 7.
[4] Johnston, Lesbian Nation, p. 178.
[5] Ibid., p. 279.
[6] Vide, por exemplo, o portifólio do fotógrafo J. Frederick Smith, “com deslumbrantes retratos inspirados por poemas da Grécia Antiga sobre o amor entre mulheres”, na Playboy de outubro de 1975, pp. 126-35.
[7] Um fotógrafo que é particularmente obcecado por “capturar” mulheres em poses pseudolésbicas é David Hamilton. Ele é o criador dos seguintes livros de fotografia: Dreams of a Young Girl, texto de Alain Robbe-Grillet (Nova York: William Morrow and Co., 1971). Sisters, texto de Alain Robbe-Grillet (Nova York: William Morrow and Co., 1971). Este livro tem uma seção pictórica ultrajante entitulada “Charms of the Harem” [Charmes do Harém]. Hamilton’s Movies — Bilitis (Zug, Suíça: Swan Productions AG, 1977).
[8] Lisa Buck (notas não publicadas a respeito do transsexualismo, outubro de 1977), p. 3.
[9] Um exemplo deste tipo de literatura é o livro Feminine Forever, de Robert Wilson (Nova York: M. Evans, 1966). Esse livro vendeu 100.000 cópias em seu primeiro ano, e foi citado na Look e na Vogue.
[10] Vide Deborah Lamed, “The Greening of the Womb”, New Times, 12 de dezembro de 1974. pp. 35-39

Janice Raymond em Transsexual Empire

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“Gênero”

Uma maneira de descrever o problema da escrita feminista acadêmica é caracterizá-la como ‘idealismo’ no sentido que o termo ‘ideologia’ foi usado por Marx e Engels (1974). Transferir conceitos do seu contexto original para outro contexto, nesse caso, do materialismo histórico marxista para o feminismo, é algo que precisa ser feito com cuidado. Entretanto, parece haver uma semelhança entre o problema tratado por Marx e
Engels no meio do século XIX e a tendência, na maior parte da escrita feminista acadêmica, de evitar desafiar a dominação masculina. Marx e Engels caracterizam uma crítica supostamente “revolucionária” que falhou em considerar a atividade de seres humanos na vida real e sua situação real dentro das relações de poder capitalistas, como uma batalha na “esfera do puro pensamento”. Fazendo isso, eles não estavam sugerindo que filósofos parem de pensar e comecem a agir. Na verdade, eles estavam argumentando que uma filosofia que se propunha a dar conta da condição humana, sem considerar as relações de poder na sociedade, não estava apenas sem contato com a realidade, seu esquecimento serve ao propósito. Esse propósito era negar a existência de relações de poder e disfarçá-las como algo neutro e universal. Assim, “idealismo” não significa trabalhar com ideias, em vez de fomentar a revolução no chão da fábrica ou nas trincheiras. Significa trabalhar com ideias que são separadas das relações sociais de dominação e falham em reconhecê-las. Como as relações de dominação combatidas pelo feminismo são as da supremacia masculina, obras feministas que falham em reconhecer isso são idealistas, nesse sentido.

Então, o problema do idealismo, no sentido no qual estou usando o termo, não é apenas um problema da separação entre ideias e realidade, mas do tipo de realidade que essas ideias ignoram estudadamente, isto é, a realidade da dominação. Meu uso do termo toma seu significado no contexto de uma crítica da ideologia. O idealismo é uma das formas que a ideologia toma. Embora Marx e Engels não façam essa distinção, ela é útil, pois mostra que a ideologia não é uma questão de ideias, que ela invade cada esfera da existência humana, incluindo o que é mais íntimo e comum. O idealismo é aquela forma da ideologia para a qual a academia tem especial inclinação. Refere-se à tendência do trabalho acadêmico de divorciar ideias do mundo do mundano. Essa tendência não é inevitável. Até o ponto em que ideias não reforcem relações de poder, elas não podem ser chamadas de “idealistas” nesse sentido, não importa o quão sejam esotéricas, abstratas ou distanciadas da experiência. Mas, como brincar com ideias é incessantemente fascinante por si mesmo, a desconexão só pode ser evitada através de um compromisso consciente e deliberado com uma estrutura moral e política que mantém a ligação entre ideias e aquilo para o que servem essas ideias. Conceitos como “gênero” falham em manter essa ligação.

De fato, o termo é sem sentido, tanto que, às vezes, é difícil entender exatamente o que é dito. Linda J. Poole, por exemplo, cita a seguinte afirmação de um texto sobre mulheres e relações internacionais: “A ideologia pode certamente destruir o desempenho organizacional, e a ideologia do gênero não é exceção”. O comentário de Poole sobre essa afirmação é: “Isso vindo de uma mulher que tem sido uma proponente ativa na questão da defesa do gênero!” (Poole, 1993: 134). Poole parece ter lido “ideologia do gênero” como
“feminismo”. Seu comentário implica em que a autora da afirmação está renunciando a seu feminismo anterior, ao afirmar que a introdução de objetivos e valores feministas poderiam “destruir o desempenho organizacional”. Entretanto, “ideologia do gênero” poderia também significar a ideologia supremacista masculina, e a afirmação poderia significar que foram as ideologias que favoreceram os homens às custas das mulheres e que foram ineficientes em termos de desempenho organizacional. Por outro lado, não é provável que a ideologia supremacista masculina “destrua” alguma coisa já que as organizações já são estruturadas seguindo essa linha. Então, talvez Poole esteja certa no final das contas, e “ideologia oe gênero” nesse contexto significa mesmo “feminismo”. O ponto, todavia, é que é simplesmente impossível decidir. A falta de sentido do termo “gênero” é uma consequência tanto do papel eufemístico que ele desempenha dentro do feminismo acadêmico (e na mídia, e em qualquer lugar onde a palavra “sexo” seria usada no lugar) e da incoerência de suas origens. O “gênero” amacia a dureza e a rigidez da “dominação masculina”. Ele fornece uma aparência de assunto a ser tratado, enquanto, ao mesmo tempo, permite que os problemas reais sejam evitados. Originalmente, “gênero” foi estabelecido em oposição a “sexo”, para ressaltar que as diferenças entre os sexos é construída socialmente, não natural. Mas, a distinção “sexo/gênero” não desafia a oposição “sociedade/natureza” – ela permanece integral dentro daquela distinção. Se “o social” é “gênero”, e “sexo” é algo diferente de “gênero”, então sexo é algo que não é social. Se não é social, então tudo o que sobra é a categoria residual do “natural” e “sexo” permanece tão “natural” quanto sempre foi. Como consequência, a distinção “sexo/gênero” não perturba e desestabiliza a oposição “sociedade/natureza”, mas reforça-a, porque é o mesmo tipo de distinção.

Argumentei em outro lugar que ele funciona como uma estratégia despolitizadora ao separar “diferenças sexuais” do domínio do social e localizá-las na “biologia”. Já que, como todos sabem, a biologia não causa diferenças sexuais, essa manobra permite que a construção social de “diferenças sexuais” permaneça não examinada. A substituição de “sexo” por “gênero” coloca o debate a dois graus de diferença das verdadeiras relações de poder desafiadas pelo feminismo. Ele impede a discussão sobre diferenças sexuais, tirando-as da esfera do social e alocando-as na “biologia”; e impedindo a discussão das diferenças sociais, ele impede a discussão sobre aquele sítio crucial para a investigação das relações de poder supremacistas masculinas – a manutenção das “diferenças” sexuais, conforme elas são constituídas atualmente, e a heterossexualidade compulsória como mecanismo para gerenciar o consentimento das mulheres na sua subordinação aos
homens. (Thompson, 1991: 168-76; ver também Gatens, 1983). Mas, como o feminismo é uma política, já está interessado no nível de social, de moral e de político. Não há nenhuma necessidade para o “gênero”, já que o interesse feminista no sexo já é moral e político e, portanto, social, não um interesse “biológico”. O que quer que possa estar fora do social.

Jane Flax diz que “O avanço e resultado mais importante das teorias e práticas feministas é que a existência do gênero foi problematizada” (Flax, 1990: 21). Embora ela não diga o que é “gênero”, está claro que não é a dominação masculina. Ela vê a “dominância masculina” como meramente uma forma de “relações de gênero”, e como um obstáculo à adequada investigação dessas relações. A natureza das “relações de gênero” é “obscurecida” pela existência da dominância masculina, diz ela (pp. 22-4). Mas, isso é idealista no sentido descrito acima. (Também tem uma surpreendente semelhança com o relato da HWAG sobre “sexismo” discutido acima.) Isso extrai as “relações de gênero” das condições sociais de supremacia masculina, dentro das quais as relações entre os sexos são atualmente estruturadas, e propõe um “realmente real” das “relações de gênero”, fora dos únicos termos dentro dos quais elas são conhecíveis. Se “relações de gênero” não são aquelas com as quais estamos acostumadas no presente, o que são elas e como podemos conhecê-las? Pode ser que o que Flax quer dizer é que as relações entre os sexos não devem ser estruturadas em termos de dominância masculina, e que o feminismo precisa permitir essa possibilidade. Mas, a não ser que a dominação masculina possa ser identificada, ela não pode ser desafiada e combatida. Longe de “obscurecer” a natureza das relações dos sexos, identificar a dominação masculina elucida contra o que o feminismo está lutando. Só o foco do feminismo na problemática da dominação masculina permite-nos entender o que está em jogo. Em outra ocasião, Flax parece definir “gênero” em termos de qualquer local social em geral. Ela diz que há “pelo menos três dimensões” no “gênero”. A primeira dimensão é que “gênero” é “uma relação social” e “uma forma de poder [que] afeta nossas teorias e práticas da justiça”. Mas, a únicas categorias sociais nesse contexto de justiça são “raça e status econômico”. Ao longo de sua discussão, as outras duas dimensões do “gênero” – como “uma categoria de pensamento” e como “um elemento constituinte central no senso de si mesma de cada pessoa e… do que significa ser uma pessoa” – não há nenhuma menção aos dois sexos, mulher e homem. É só bem perto do fim da discussão, quando ela critica a ideia de “papéis sexuais” que é dada uma pista de que o “gênero” pode estar conectado com a existência dos dois sexos (pp. 25-6). Ela não menciona o fato de que a preocupação do feminismo com a justiça envolve antes de mais nada a justiça para as mulheres, incluindo mulheres localizadas dentro das hierarquias dominantes de raça e classe, mas
primeiramente mulheres enquanto mulheres designadas para o papel subordinado na hierarquia de dominação do sexo. Em consequência, “gênero” significa mais “raça” e “classe” antes de significar “sexo”.

A definição de “gênero” em termos de qualquer local social é uma consequência de uma separação de seu referente original, “sexo”. Mas, essa aparente habilidade do “gênero” de se libertar do “sexo” deixa o “sexo” ainda imerso na biologia como sua única fonte de verdade. Como Ann Oakley argumentou (Oakley, 1972), a construção cultural que é o “gênero” é meramente superficial, uma questão de “preconceito” (p. 16), de “distorção” e “diferenças aparentes” (p. 103 – ênfase minha), “simplesmente… as crenças que as pessoas têm” (p. 189), algo que é “aprendido” (p. 173) e, portanto, pode ser desaprendido. A biologia, por outro lado, é “fundamental” (p. 46). A obra de Oakley é repleta de apelos à biologia. Para ser completamente precisa, deve-se dizer que ela apela à biologia apenas quando a biologia parece substanciar seu argumento de que não há diferenças importantes entre os sexos. Ela precisa argumentar contra a existência de diferenças sexuais, porque ela confunde “diferença” com desigualdade ou inferioridade. Ela quer demonstrar que mulheres não são “realmente” desiguais e inferiores ao homens, porque elas não são diferentes. Mas, sempre que é possível fazê-lo, é a biologia que é usada para demonstrar a verdade daquela falta de diferença.

Os proponentes do “gênero” lidam com essa contínua conexão subterrânea entre a biologia e a verdade, ao tentar abandonar qualquer pretensão de verdade. Mas, o preço de tais tentativas sociais é a mesma incoerência com a qual a distinção “sexo/gênero” começou. “Gênero é (uma) representação”, diz Teresa de Lauretis (1987: 3). “O ‘real’ e o ‘sexualmente fático’ são construções fantasmáticas – ilusões de substância”, diz Judith Butler (1990: 146). Mas, palavras como “representação”, “fantasmática”, “ilusão” apenas têm significado em termos de seus opostos. Dizer que algo é uma representação é, ao mesmo tempo, dizer que há algo outro do qual aquilo é uma representação; dizer que algo é um fantasma implica em que há algo outro que é real; e dizer que algo é uma ilusão logicamente requer algo outro que é real. Em outras palavras, o que está implícito – que tudo é representação, fantasmática ou ilusão? Nesse caso, faria tanto sentido dizer que tudo é real, embora não fosse fazer mais sentido, já que o conceito de real também implica em um oposto. As palavras apenas ganham seu sentido a partir das distinções que ela fazem. Se nenhuma distinção é feita, por que usar essas palavra em vez de seus opostos? Mas, obviamente, uma distinção está sendo feita. É a mesma distinção que atormenta a separação entre “sexo” e “gênero” desde o início, a separação do “biológico” do “social”, e a caracterização do “social” como de alguma forma irreal. Mas, se há um irreal, há também um real. Já que é a biologia que é o outro da sociedade nesse discurso de “gênero”, é a bilogia que é real em face da irrealidade que é a sociedade. Que é assim está claro, embora inadvertidamente, dito por de Lauretis quando ela diz que “gênero não é sexo, [que é] um estado de natureza” (de Lauretis, 1987: 5). Então, se “gênero” é uma representação, logo o que “gênero” não é (a saber, sexo, um estado de natureza) também não é uma representação, mas a realidade original da qual o “gênero” é uma representação.

Embora de Lauretis pareça não estar ciente dessas implicações, Judith Butler explicitamente tentou lidar com elas. Ela argumenta que gênero não está para cultura como sexo está para natureza; gênero é também [sic] o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície neutra politicamente, na qual a cultura atua… Essa produção do sexo como o pré-discursivo deve ser entendida como o efeito do aparato de construção cultural designada por gênero. (Butler, 1990: 7 – ênfase da autora)
Ao argumentar que “sexo” é ele mesmo um construto social e, portanto, nada natural ou biológico, no que concerne ao feminismo, Butler está perfeitamente certa. Mas, se esse é o caso, se sexo já é social, qual é o papel desempenhado pelo termo “gênero”? O que o uso do termo “gênero” acrescenta, que já não está contido em “sexo”, visto de uma perspectiva feminista? De acordo com Butler, “gênero” é um “aparato de construção social” que faz o “sexo” parecer “natural”. Mas, isso pode ser dito sem se recorrer ao “gênero”, a saber, “sexo é uma construção social a qual se apresenta como natural”. Dizer isso dessa forma é muito mais direto e desafiador à sabedoria convencional do que interpolar “gênero” entre sexo e sua construção social. É, no final das contas, o sexo que é o construto social, e não algo outro que não o sexo. Usar uma outra palavra, “gênero”, para o construto social implica em que sexo é algo outro que um construto social.

Butler está, pelo menos parcialmente, ciente desse problema. Ela diz: “Se o caráter imutável do sexo é contestado, talvez esse construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto gênero; de fato, talvez já fosse sempre o gênero, com a consequeência de que a distinção entre sexo e gênero acaba não sendo uma distinção de verdade”. (p. 7). Mas, ela não dá o próximo passo no argumento e se desfaz da palavra “gênero”, para focar, em vez disso, no sexo e seus descontentes. Usar “sexo” e rejeitar “gênero” não se encaixaria em seu propósito, o qual é abrir um espaço teórico dentro do que ela chama de feminismo, para “aqueles ‘incoerentes’ ou ‘descontentes’ seres gendrados que parecem ser pessoas, mas falham em se conformar às normas gendradas da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas… [e cujas] persistência e proliferação… abrem dentro dos próprios termos daquela matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem de gênero” (p. 17). Os exemplos que ela menciona em seu texto de tais “desordens de gênero” são lésbicas, especialmente aquelas que “desestabilizam” e “deslocam” as normas heterossexuais de masculinidade e feminilidade através das representações de papéis “butch/femme” [lésbicas masculinas/femininas] (p. 123), o hermafrodita foucauldiano Herculine Barbine, a homossexualidade masculina (pp. 131-2), e drags e crossdressers (ambos masculinos, embora ela não diga isso) (p. 137). O termo “gênero” é perfeito para esse propósito apenas por causa de sua incoerência e idealismo. Porque ele não tem um significado definido, e porque ele é separado do único referente que faz qualquer sentido, a saber, o sexo, ele pode assumir absolutamente qualquer significado. É muito mais difícil interpretar “sexo” como “uma interpretação múltipla”, como “um artifício flexível”, como “um fenômeno mutável”, como “uma complexidade cuja totalidade é permanentemente adiada, nunca totalmente o que é em qualquer ponto do tempo”, como “fictiva”, “fantasmática” e “ilusória”. “Sexo” permanece ligado aos seus sentidos comuns de macho e fêmea, e desejo e atividade heterossexual. E assim muito próximo àqueles lugares tradicionais da supremacia masculina.

Butler não está preocupada em identificar as maneiras pelas quais o sexo é construído sob condições supremacistas masculinas, com o obetivo de desafiar, resistir, recusar e mudar essas condições. Pelo contrário, ela vê tal empresa como impossível. “Não há nenhuma repudiação radical a uma sexualidade construída culturalmente”, ela diz. Ela concorda com o que chama de “movimento pró-sexualidade dentro da teoria e prática feministas”, que “sexualidade é sempre construída dentro de termos de discurso e poder”. O máximo que podemos almejar alcançar através da “subversão” é “como reconhecer e ‘fazer’ a construção dentro da qual cada um inevitavelmente está”. A única opção política disponível envolvia “possibilidades de fazer o gênero [as quais] repetem e deslocam através da hipérbole, dissonância, confusão interna e proliferação os próprios construtos pelos quais elas são mobilizadas” (pp. 30-1).

Ela mesma não acredita na “invariabilidade” do “gênero”, já que ela hesita em admitir que “gênero” é “escolha”, e que é possível se engajar no “exercício da liberdade de gênero” (Butler, 1987: 131, 132). Mas, ela nunca examina o que está envolvido nessa questão da “escolha”. A boa qualidade da “escolha” é autoevidente, e quanto mais, melhor, porque permite maior liberdade. Mas, ela nunca pergunta para quê serve essa liberdade, e sua obra impede qualquer possibilidade de identificar algumas escolhas como ruins. Essa postura libertária permite que ela evite tratar das questões éticas levantadas pela exposição feminista do sexo como socialmente construído sob condições supremacistas masculinas. Embora ela mesma presumidamente não iria querer ter uma postura moralmente neutra em relação às piores formas de comportamento sexual masculino, em sua obra, tais males como abuso sexual masculino de crianças, estupro, assédio sexual, prostituição, pornografia não são nada além de “escolhas”. Ela, obviamente, não diz isso. Ela simplesmente evita discutir essas questões.

Martha Nussbaum conclui que o argumento de Butler “colabora para o mal”, por causa da ausência de uma instância explicitamente ética sobre questões de justiça social e dignidade humana, uma falta que deixa “um vazio no coração de [sua] noção de política” (Nussbaum, 1999: 9), e porque só pode recomendar a inatividade política em face de males sociais óbvios e urgentes (p. 12). Embora eu preferisse dizer que a obra de Butler é cúmplice da dominação, eu concordo com Nussbaum que o derrotismo político é uma consequência do esquema teórico de Butler. Ela insiste que, porque somos socialmente constituídos, não há quase nada que possamos fazer sobre estruturas sociais opressivas, a não ser reencená-las como paródia, enquanto continuamos a abraçá-las como nosso senso de identidade. Em seu mais recente trabalho, de acordo com Nussbaum, Butler argumenta que as identidades conferidas a nós pela opressão institucionalizada não só são inevitáveis e para além do alcance de qualquer resistência política, como também são algo bom: “’porque um certo narcisismo toma conta de qualquer termo que confere existência, eu estou inclinada a abraçar os termos que me machucam porque eles me constituem socialmente’” (citado na p. 9). Embora Nussbaum não mencione isso, Butler está bem certa em dizer que os prejuízos deixados pela dominação social constituem as identidades daqueles que sofrem a sujeição. Butler está errada é em sua insistência de que isso é irreparável e deve ser aceito ansiosamente, com prazer e alegria. À medida que meu desejo sexual, por exemplo, me motiva a machucar a mim e a outros, eu estou condenada a repeti-lo eternamente. Eu posso me recusar a agir sobre isso, e se isso significa que, então, eu estou, dessa forma, privada de prazer sexual imediato, que assim
seja. Eu posso, na verdade, encontrar prazer em me privar da cumplicidade com algo que eu acho detestável, um prazer que pode não ter a excitação da degradação sexual, mas o qual fornece compensações em meu sentimento de que eu tenho controle da minha própria vida emocional. Nussbaum localiza o trabalho de Butler dentro do contexto de “uma nova tendência inquietante” na teoria feminista, uma tendência a qual
demonstra um esquecimento marcado da “real situação de mulheres reais”, em favor de “publicações acadêmicas de obscuridade imponente e abstração desdenhosa” (p. 2). O termo “gênero” é central a essa tendência inquietante.

Há algumas teóricas feministas que usam a palavra “gênero” e que explicitamente rejeitam a separação entre “biologia” e “sociedade”, e não têm qualquer objeção em identificar a dominação masculina. Mas, o termo ainda gera confusão. Miriam M. Johnson usa “gênero” para se referir ao “status social de alguém enquanto macho ou fêmea”, enquanto reserva a palavra “sexo” para se referir a “atividade erótica genital (sexo na cama)” (Johnson, 1988: 202). Johnson faz a distinção entre “sexo” como atividade sexual e “gênero” como papel social, de modo a evitar o que ela vê como a tendência dominante de definir “gênero” em termos de “sexo”. Ela quer evitar a suposição de que as inequidades nas situações sociais das mulheres e homens são, de alguma maneira, causadas pela dicotomia macho dominante/fêmea submissa entre as sexualidades masculina e feminina. Ela diz: “Usar a palavra sexo para descrever atividade sexual e a diferença entre machos e fêmeas mostra o grau em que o gênero é (con)fundido com o sexo” (p. 220). O problema com essa fusão, conforme vê Johnson, é que mulheres são definidas em termos de feminilidade, passividade e submissão, e homens em termos de masculinidade, dominância e agressão, porque é assim que acontece na cama. “Separar gênero de sexo”, diz ela, “ajuda a quebrar essa suposição”. Ela argumenta que a influência é ao contrário, que as sexualidades masculina e feminina são diferentes, porque os papéis sociais de mulheres e homens são diferentes e desiguais. Não quer dizer que a atividade sexual, definida dessa maneira, é definitiva do que se chama “gênero”. Pelo contrário, é o “gênero” definido como dominância masculina e submissão feminina, o que é refletido nas diferenças entre as sexualidades feminina e masculina.

Mas, embora ela esteja correta nisso, separar “sexo” de “gênero” meramente confunde a questão. Mais uma vez, se “gênero” se refere ao social, então “sexo” deve se referir a alguma coisa outra. Mas, sexo heterossexual é também social. É parte da definição social de feminino e masculino, não algo outro. A distinção permanece uma solução idealista, isto é, é uma distinção em pensamento, não nas reais relações sociais do poder masculino. Meramente dizer que algo não é de certa maneira não vai fazê-lo desaparecer. E existe o perigo de que fazer a distinção verbal irá mascarar a percepção feminista da realidade social corrente.

“Gênero” deve ser expugnado do vocabulário feminista, a não ser que seja confinado a seu contexto gramatical e linguístico original, palavras têm gênero, pessoas têm sexo em ambos os sentidos da palavra, no sentido de que há dois sexos, e no sentido de desejo e atividade sexual. Que eles sejam geralmente confundidos como Johnson apontou, é uma consequeência da hegemonia heterossexual – a sexualidade acontece porque há dois sexos, isto é, sexo já é heterossexual. Substituir sexo por “gênero” compõe a confusão, porque se evade à necessidade de desembaralhá-los. Mais importante, porque na maioria dos seus usos, “gênero” não tem significado, pode tomar absolutamente qualquer significado, incluindo alguns antifeministas. Ao ser separado de seu referente na linguagem comum, o “sexo”, ele flutua livremente em um espaço discursivo muito distanciado das reais relações sociais da supremacia masculina. Ele é politicamente inlocalizável. A frequência com que isso acontece dá margem à suspeita de que isso é o que se pretendia, desde o início.

Denise Thompson em Radical Feminism Today

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Resistência Lésbica

Todas as lésbicas se separam da cultura dominante masculina ao ousarem o pensar lésbico, e ainda mais por escolherem direcionar suas energias sexuais e emocionais às mulheres e não aos homens. É por esse ato de separação que lésbicas são punidas. O sexo lésbico não fere os homens. Aliás, o sexo lésbico é usado por homens na prostituição e na pornografia desde muito tempo para a obtenção da ereção masculina. É o amor lésbico, que inclui o sexo, que é a separação dos homens vista como desleal, porque é essa a separação que retira membras da classe subordinada das mulheres, que é a base do poder masculino, e de onde provém a conexão entre mulheres que pode formar a base de resistência. É essa separação das lésbicas, que é percebida como a falta de entusiasmo pelos homens e de tudo sobre eles, ao invés de performances e práticas sexuais “desobedientes”, que é subversivo.

Sheila Jeffreys em Lesbian Heresy

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AS ORIGENS DA TEORIA QUEER

Teoria Queer foi o termo usado pela pesquisadora Teresa de Lauretis para nomear os estudos de sexualidade que seguem a perspectiva pós-estruturalista de análise, surgidos em meados dos anos 80. Estes estudos vieram responder demandas do próprio movimento feminista, assim como do movimento homossexual, partindo de uma nova forma de pensar a realidade social, consolidada nos estudos filosóficos de Michel Foucault e Jacques Derrida.

Para entendermos que demandas foram estas e como o Queer vem respondê-las, faço (dentro dos limites do meu conhecimento, que também não é muito extenso) uma pequena e bastante superficial linha histórica:

As primeiras gerações de mulheres organizadas em um movimento feminista questionavam a posição da mulher na sociedade, buscando mais espaço, representatividade, direitos; em outras palavras, questionavam o sujeito universal masculino, referencial de humanidade até ali. Entretanto, elas não questionavam a existência feminina, a noção de “essência da mulher”, herdada das concepções filosóficas metafísicas.

Tendo como marco a obra de Simone de Beauvoir, as gerações seguintes começam a questionar o processo de transformação do indivíduo do sexo feminino em mulher, através do processo de socialização. A premissa é de que, através de mecanismos de controle e subordinação impostos ao longo da sua existência, se produzia um sujeito feminino, com características marcadas do seu gênero. A falha, apontada por teóricas lésbicas e negras, é que esta linha de pensamento cria a ideia de sujeito feminino universal, produto das forças sociais, mas ainda assim único e indiferenciado, que não acolhia as realidades de mulheres não brancas e não heterossexuais. O sujeito feminino desta teorização é branco, de classe média ou alta e heterossexual; além disso, essa linha de raciocínio pode levar a uma espécie de “determinismo social”, em que as pessoas são totalmente definidas pela socialização, incapazes de quebrar as normas (o que é obviamente irreal, senão o próprio feminismo não existiria).

Tentando suprir estas falhas, surgem dois questionamentos: o da heterossexualidade e o da identidade.

O questionamento da heterossexualidade iria demonstrar que o desejo heterossexual não é um impulso natural, mas o resultado de um regime político que categoriza os corpos para, depois, possibilitar a apropriação dos corpos femininos pelos masculinos, com interesse em controlar a reprodução. Os estudos produzidos a partir desta linha de pensamento tinham grande afinidade com uma parcela do movimento homossexual masculino, acreditando que a repressão aos gays derivava da mesma necessidade de controlar a reprodução e manter a rígida divisão entre os sexos que oprimia as mulheres. Deles surgiriam conceitos como a heterossexualidade compulsória, a objetificação, a maternidade compulsória, entre tantos outros.

O questionamento da identidade iria demonstrar que não havia qualquer unidade no sujeito produzido pela experiência feminina. As intersecções com outros tipos de opressão (de classe, de raça, de sexualidade) não se somam simplesmente à opressão sexista, mas modificam a experiência individual de formas únicas; além disso, o modo como cada indivíduo recebe a socialização e reage às experiências é sempre único, de forma que não existe um sujeito feminino, mas uma infinidade de diferentes sujeitos que têm como experiência comum o pertencimento à classe (política) feminina.

Entretanto, os estudos que desenvolviam estes questionamentos sofreram um grave revés nos anos 80: com o surgimento do HIV e início da epidemia, houve um enorme avanço conservador. O movimento homossexual viu-se obrigado a abrir mão das pautas radicais que partilhava com o movimento feminista e aceitar o discurso essencialista (que afirma o caráter natural e inato da sexualidade) e pautas “assimilacionistas” (aquelas que buscam inserir o indivíduo na sociedade apesar da sua suposta anormalidade. As pautas assimilacionistas, embora garantissem condições de negociação com o conservadorismo crescente, tornam-se prejudiciais para os movimentos sociais na medida em que impedem o questionamento das estruturas sociais, tomando-as como expressão natural. Os estudos que partem desta perspectiva são chamados de “estudos de minorias”, por tratarem as populações marginalizadas como grupos coesos e de origem “natural”; com isso, os importantes questionamentos sobre a heterossexualidade e sobre a identidade tornam-se impossíveis.

Parte das estudiosas homossexuais e feministas não aceitava essa mudança. Para elas, a “inclusão” do indivíduo na sociedade não era suficiente porque deixava intactas as bases da opressão, resultando em uma “maquiagem” das desigualdades e, por isso, desejavam levar à frente as discussões sobre o sistema de exploração/dominação e as reflexões sobre a identidade e a heterossexualidade como regime político.

Neste mesmo período, se consolidava uma nova perspectiva filosófica para os estudos sociais: o pós-estruturalismo. Esta linha afirma a necessidade de analisar a realidade social a partir de uma perspectiva histórica, localizando os discursos sociais que criam as estruturas nos diversos contextos (históricos, geográficos e sociais) em que surgiram, abandonando noções tradicionais de verdade e objetividade. Em outras palavras, a nova linha pensamento irá analisar o processo de construção das normas, das instituições e das estruturas sociais, demonstrando seu caráter “artificial” e destacando sua relação com o contexto histórico e político.

Cabe aqui fazermos um parêntese para explicar o que seria o “discurso”. Ele seria, grosso modo, um conjunto de premissas que nos permite interpretar o mundo; através da interpretação dos fatos, baseada em um discurso, produz-se uma verdade sobre eles. Inúmeras interpretações são possíveis e a realidade material é um efeito da “aceitação social” de um conjunto de discursos. Tentando ilustrar de forma bastante simplificada, podemos dizer que há vários discursos que buscam interpretar as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O discurso médico parte da premissa de que a humanidade é, em sua maioria, heterossexual; portanto, a homossexualidade é um desvio, não necessariamente prejudicial, mas que deve ser estudado e explicado. O discurso dos estudos de minorias parte, também, da premissa de que a heterossexualidade é natural, mas conclui que a homossexualidade é tão natural quanto ela, devendo ser respeitada e acolhida. Os estudos lésbicos radicais, por sua vez, afirmam que a heterossexualidade é um instrumento de controle da reprodução, não um impulso natural; sendo assim, a homossexualidade representa resistência ao sistema de apropriação e não apenas um espelhamento da heterossexualidade. Os dados são os mesmos, mas as conclusões são diferentes porque as interpretações aconteceram a partir de discursos diferentes, de conjuntos de premissas diferentes.

Deste modo, a perspectiva pós-estruturalista afirma que todo o conhecimento (assim como as categorias sociais) produzido pela humanidade é o resultado de uma interpretação dos dados existentes a partir de um discurso ou conjunto de discursos. E a dinâmica entre discursos é profundamente marcada por relações de poder, produzindo as normas, as opressões e modificando-se de acordo com os contextos históricos, sociais, geográficos.

Esta perspectiva foi abraçada por pesquisadores e pesquisadoras que não aceitavam a visão assimilacionista dos estudos de minorias, permitindo a continuidade e o aprofundamento dos questionamentos sobre a heterossexualidade e a identidade; as próprias feministas lésbicas, como Adrienne Rich e Monique Wittig, já vinham aplicando, nos anos 80, princípios pós-estruturalistas em suas análises e são elas as precursoras das análises que viriam a constituir a Teoria Queer, nome dado por Teresa de Lauretis ao conjunto dos estudos de sexualidade produzidos a partir de uma perspectiva pós-estruturalista.

O nome escolhido faz referência ao xingamento utilizado contra homossexuais e pessoas desconformes quanto ao gênero nos Estados Unidos; literalmente, queer significa “estranho”, “anormal”, o que coube perfeitamente à linha de estudos que pretende demonstrar o caráter político da normalidade e da anormalidade, sua origem artificial e suas consequências de naturalização da assimetria e marginalização de grupos. Os estudos queer integram o que se convencionou chamar de “Saberes Subalternos” (entre os quais também está incluída parte dos estudos feministas), cujo foco está em questionar as certezas produzidas pelo discurso socialmente aceito (chamado de hegemônico), evitando produzir novas categorias e reconhecendo a possibilidade constante de modificação da sociedade.

Como podemos ver, os estudos queer guardam semelhança quanto ao seu objeto de estudo (as normas que regem a sexualidade) e quanto à filosofia/metodologia (pós-estruturalista), mas seus conteúdos podem divergir bastante, dependendo das premissas adotadas pelos pesquisadores. Assim, por considerar a mutabilidade dos discursos e a fragilidade das noções de “normal” e “anormal”, os estudos queer podem render-se à tendência de ignorar a materialidade das opressões, diminuir a importância dos estudos que os precederam. Essa é uma tendência real na academia, mas o queer não se resume a ela.

O fato de as categorias sociais serem apenas consequências da aceitação social de um conjunto de discursos não diminui o peso que estas categorias têm na vida cotidiana das pessoas inseridas neste contexto. Em outras palavras, embora as construções sociais sejam teoricamente frágeis, elas se materializam na vida cotidiana, exercendo influências e opressões reais.

Mais uma vez tentando ilustrar: as divisões de territórios entre países são conceitualmente muito frágeis, dependendo da aceitação social das fronteiras, de acordos históricos. As fronteiras são linhas fictícias que, em teoria, não precisam significar nada. Mas isso não quer dizer que você possa invadir o território de um país sem ser presa; a aceitação social desta convenção que é a linha imaginária da fronteira faz com que ela se torne uma realidade material. E, sendo uma realidade material, ela traz consequências para a vida prática das pessoas, muitas vezes sendo fundamento de opressões e desigualdades.

Para lidar com esta situação, de um lado, não podemos ignorar as consequências da materialização dos conceitos através da aceitação social dos discursos que dão base a eles. Mas de outro, na posição de pessoas que desejam construir uma realidade livre de opressões, não podemos ignorar que estes conceitos são mutáveis, artificiais e resultados de negociações históricas, de uma queda de braço entre diferentes discursos, diferentes interesses. Para nós, abolicionistas de gênero, esta consciência da fragilidade das categorias e de tudo que envolve seu processo de formação é de extrema importância, porque é a partir dela que podemos pensar novas formas de articulação, de organização da sociedade.

É compreensível que muitas de nós, por acreditarmos em uma teoria feminista baseada no reconhecimento das opressões, tenhamos uma grande resistência ao pensamento queer, mas é importante lembrarmos que o pós-estruturalismo não é sinônimo de autoidentificação; pelo contrário: os estudos queer consideram a identidade como uma ilusão produzida pela sociedade, uma “ficção social” que só faz sentido dentro de um contexto político. Essa leitura, de que o gênero é algo que está dentro de nós, sem qualquer relação com as estruturas sociais, é uma distorção grosseira das análises acadêmicas.

A própria Judith Butler, considerada um dos maiores nomes do queer, fez esse apontamento (em uma entrevista de 1992, que transcrevo, em parte, aqui):

“Kotz: Eu me pergunto como Problemas de Gênero tem sido interpretado por pessoas jovens que não necessariamente viveram ou se lembram dos modelos feministas baseados em identidades fixas que você questiona.
Butler: Bem, tem acontecido uma leitura equivocada, que infelizmente é a mais popular. Esta leitura é mais ou menos assim: eu posso acordar de manhã, olhar meu guarda-roupa e decidir de que gênero eu quero ser hoje. Eu posso mudar uma peça de roupa e, com isso, meu gênero: estiliza-lo; e à noite eu posso mudar de novo e ser outra coisa completamente diferente. O resultado é uma espécie de mercantilização do gênero, o entendimento de que se pode trabalhar o gênero como uma espécie de consumismo.
Kotz: E também como um ato totalmente voluntário…
Butler: …por parte de um sujeito que trata do gênero deliberadamente, como se fosse um objeto preexistente, quando tudo que eu queria dizer era que a própria subjetivação, a própria formação das pessoas, pressupõe o gênero em alguma medida – que o gênero não é escolhido e que a performatividade não é uma escolha radical, não é voluntária. Eu terminei recentemente outro manuscrito no qual tento, página atrás de página, refutar a redução da performatividade de gênero a algo como estilo. Performatividade tem a ver com repetição, muitas vezes com a repetição opressiva e dolorosa de normas de gênero forçando-as a um novo significado. Isso não é liberdade, mas uma questão de como trabalhar esta armadilha na qual estamos inevitavelmente presos.
[…]
Kotz: É preocupante como certas categorias que você articulou, como “imitação de gênero” ou “paródia subversiva”, acabam ser usadas de formas completamente desligadas do original. Qualquer coisa pode ser vista como paródia subversiva, porque é “irônica”.
Butler: O que normalmente é ignorado no meu trabalho é a ênfase no poder e na intensa normatividade que controla o gênero. Eu tinha a intenção de interrogar as ironias dolorosas de uma pessoa estar inserida nas mesmas formas de poder às quais se opõe, estava tentando entender que tipo de agência pode surgir desta situação. Eu acho inevitável que todas as posições estejam inseridas em uma teia de poder, e nesse sentido em me aproximo de Foucault; mas eu não acho que uma pessoa seja determinada pelas relações de poder.”

Quando o queer fala na importância da autoidentificação, o questionamento é sobre como pessoas que passaram pela mesma socialização, que sofreram as mesmas imposições, interpretam o seu lugar no mundo de formas diferentes, agem de formas diferentes, interferem no mundo de formas diferentes; em outras palavras, todo indivíduo é um produto único e singular das experiências que viveu e da forma como as interpretou. Mais além, há o questionamento sobre os espaços sociais que são criados a partir do momento em que se quebra a norma, espaços que se diferenciam dos clássicos “homem e mulher” impostos pelo modelo patriarcal.

Mais uma vez tentando ilustrar: Os indivíduos do sexo masculino sofrem uma mesma socialização, têm experiências comuns. Mas é possível que ma pessoa do sexo masculino não se conforme com as normas de gênero e se entenda como travesti; por causa disso ela não ocupa o mesmo lugar social que um homem. A forma como essa pessoa se identifica faz com que ela estabeleça relações diferentes daquelas que um homem vive, seja interpretada e tratada de forma diferente. Cria-se um espaço social que não é de homem, tampouco de mulher; é o espaço da travesti. Essa lógica se repete em diversas outras categorias de desconformidade (entre elas a lésbica).

Quando o queer fala sobre a fluidez do gênero e sexualidade, não quer dizer que eu posso mudar meu gênero ou orientação sexual a qualquer momento, de acordo com o que estou sentindo hoje, mas sobre como o discurso do gênero muda ao longo da história da humanidade (modificando, com ele, o entendimento e a categorização das práticas sexuais), sobre como o indivíduo muda e se constrói cotidianamente e sobre como uma pessoa pode mudar sua visão sobre si mesmo ao longo de sua vida, a partir de experiências, discursos e perspectivas novas com as quais tenha contato.

Exemplos disso, para citar situações que estão presentes na nossa militância, são lésbicas que se declaravam hetero ou bissexuais durante períodos da sua vida ou lésbicas que se entendiam como meninos durante a infância. O contato com o discurso e as experiências vividas em ambientes feministas possibilitam mudanças de comportamento, o estabelecimento de novos tipos de relação, assim como a reinterpretação do seu lugar no mundo, muitas vezes terminando com a reivindicação de uma nova identidade política.

Acredito que nós deveríamos dedicar um pouco mais de tempo para conhecer a perspectiva queer; há muito o que criticar, mas também há muito o que aprender com ela. Se nós estivéssemos abertas a usar as ferramentas, reflexões e análises que o queer propõe, poderíamos construir um feminismo radical mais abrangente e complexo sem abrir mão da materialidade, inclusive dentro da academia, onde as críticas (muito válidas) ao feminismo radical têm feito com que análises importantes sejam esquecidas, descartadas junto com os posicionamentos e análises que realmente não servem mais ao momento que vivemos.
Para concluir, quero lembrar que este é um resumo realmente muito superficial do assunto e que, por mais questionável que o conhecimento acadêmico possa ser, se queremos usar seus conceitos ou contestá-los, é necessário conhecê-lo.

Textos sobre a teoria queer, todos disponíveis na internet:
– Estranhando as ciências sociais: notas introdutórias sobre a Teoria Queer (Richard Miskolci)
– A Teoria Queer e a sociologia: o desafio de uma analítica da normatização (Richard Miskolci)
– Teoria Queer a e questão das diferenças: por uma analítica da normalização (Richard Miskolci)
– Introdução ao Dossiê Saberes Subalternos (Larissa Pelúcio)
– The body you want (entrevista da Judith Butler com a Liz Kotz)
– Como os corpos se tornam matéria (entrevista da Judith Butler)

 

por  Mônica Saldanha

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luta

Eu gostaria de poder reviver as mortas.

É isso que eu gostaria de ver.

Um dos motivos pelos quais a Direita alcança tantas mulheres é porque a Direita tem um deus transcendental que diz que irá curar toda sua dor e sofrimento, todas suas feridas, “Eu morri por você, eu curarei você”.

Feministas não tem uma deusa transcendental que pode curar desta forma. Nós temos ideias sobre equidade e justiça. E nós temos que achar formas de torná-las reais.

Nós não temos mágica. Nós não temos poderes sobrenaturais. E nós não conseguimos continuar colando de volta a integridade mulheres que foram quebradas em pedacinhos.

Lutar é o mais perto de cura que vamos chegar. É importante entender que nós viveremos em uma boa dose de dor pela maior parte de nossas vidas. Se sua primeira prioridade é viver uma vida sem dor, você não será capaz de ajudar a si mesma ou outras mulheres.

O que importa é ser guerreira. Ter um senso de honra sobre poder político é cicatrizante. Disciplina é necessária. Ações contra homens que machucam mulheres devem ser reais.

Nós precisamos vencer.

Nós estamos em guerra.

Nós necessitamos de uma resistência política.

Nós precisamos disso acima da terra.

Nós precisamos disso com quem faz as leis, com nossos oficiais de governo.

Nós precisamos disso com nossas mulheres profissionais.

Nós precisamos disso acima da terra.

Nós precisamos disso embaixo da terra também.

“Vida e Morte” (1997) – Andrea Dworkin

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Sobre sororidade

Uma vez conversei com a Carmen. Disse que estava tendo problemas com muitas mulheres a minha volta e que tinha vontade de sumir.
Que eu queria sair dos espaços feministas e desistir de tudo.
A Carmen então me contou uma história sobre resistência de mulheres e sobre o verdadeiro conceito de sororidade. Guarde isso.

Antes vou falar sobre 3 homens (desde já, me desculpa minha deusa por colocar você em um post onde cito homens tão desprezíveis, mas é necessário.)

Jair Bolsonaro, Eduardo Cunha e Alexandre Frota. Eles tem muito o que nos ensinar.

Jair Bolsonaro é um homem cuja visibilidade na mídia se dá por ser um cara preconceituoso e uma verdadeira paródia da realidade masculina do nosso país.
Ele é católico não praticante e diz acreditar em Deus.
Ele faz discursos inflamados contra corrupção. Coincidentemente, esses discursos aumentaram no governo Dilma. Mas mesmo assim apoia e defende o Eduardo Cunha, que está sendo investigado por corrupção. Falaremos dele já já.
Bolsonaro é contra o aborto. Faz piada de estupro. Ridiculariza homossexuais e lésbicas. Faz discurso moralista sobre família.

Eduardo Cunha tem muitas coisas em comum com Bolsonaro. Mas tem muitas diferenças também. Ele é religioso. É sabido que as igrejas católicas e evangélicas não se bicam. A igreja protestante existe justamente por não concordar com os dogmas católicos. E isso gera uma confusão muito grande de intolerância religiosa. MAS DUDU E JAIR passam por cima disso.
Eduardo Cunha, em tese, não deveria defender pena de morte. Ele é cristão. Também deveria ser bastante conservador no que diz respeito a sexualidade, mas ainda assim se filia a homens que acham graça em estupro.
Estranho, não?

Alexandre Frota já se declarou gay na televisão. Faz filmes pornôs. É conhecido por uma irreverência incomum. Já disse em rede nacional ter estuprado uma mulher, uma mãe de santo.
E ele apoia Jair Bolsonaro, um moralista conservador que defende pena de morte pra estuprador. Que apoia Eduardo Cunha, um fanático religioso investigado pelo MP que em tese, não deveria defender pena de morte.

Do mesmo jeito que tem fanático religioso, militar, amor-livre, brother da praia, surfista, skatista, pagodeiro, budista, carnista, vegano, roqueiro, jogador de futebol, jornalista da Globo e os cacete a 4 defendendo o Laercio. E muitos outros. Isso é especialidade dos homens. É como se um alarme apitasse para o exército se reunir. É uma tática de guerra mesmo, de guerra ideológica.

Se tem uma coisa que homens aprenderam nessa vida, é que eles precisam ser unidos. Eles aprendem a passar por cima das diferenças pelos seus interesses em comum. Homens se odeiam profundamente, e como ela mesma disse “se matam por coisas estúpidas como jogos de futebol”. Mas nada une mais flamenguistas e vascaínos, comunistas e direitistas, e todas as dicotomias masculinas do mundo, do que o ódio às mulheres.

Essa conversa com a Carmen me ensinou isso. O patriarcado é descentralizado e sustentado por micro filiações entre os homens. Os homens, com suas amizades, coleguismos e defesas, formam o maior partido do mundo.
E esse partido odeia mulheres.
E mesmo descentralizado, ele é organizado. OS HOMENS SABEM AS REGRAS. E eles não vão abrir mão disso por você. Não se iluda. Não há a menor chance. Não importa se vc é namorada, irmã, melhor amiga ou do partido dele.

A gente precisa aprender isso com eles. Urgentemente.
Sororidade não é e nem nunca foi sobre amor. Sororidade é sobre GUERRA.

(Esse texto é baseado em um texto da Carmen, que foi diretamente pra mim em uma conversa e não sei se ela gostaria que publicassem. Todos os créditos deste são para ela.)

 

por Júlia Fernandes

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“Homens pensavam, escreviam e criavam porque mulheres estavam colocando sua energia nesses homens; mulheres não criaram a cultura porque estavam ocupadas com o amor. A cultura masculina foi construída usando o amor das mulheres, e às custas dele. Se mulheres são uma classe parasítica vivendo da – e à margem da – economia masculina, o reverso também é verdadeiro: a cultura masculina foi e é parasítica, se alimentando da força emocional de mulheres, sem reciprocidade.”

A Dialética do Sexo- Shulamith Firestone

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FANTASIAR UM FUTURO. A PROPRIEDADE NÃO É SÓ UMA IDEIA, É TAMBÉM UM SENTIMENTO DE PODER

Quando nos relacionamos com a natureza, com os animais, com os objetos, estabelecemos diferentes vínculos, que nesta civilização patriarcal são de domínio e que vão além do material e do concreto; é um sentimento de poder, de controlar o incontrolável, de decidir se as coisas existem ou não, é a divinização no sentido de transcendência. Esta ânsia de divindade e de propriedade, que rodeia o ser humano, não é natural, mas está construída culturalmente e instalada por meio de ideias, que se transformam em “verdade”, em sentimentos e desejos. O sentimento de propriedade vai se modificando e reinstalando de maneira constante, ele vai se formulando de acordo com certos imaginários e interesses. Antes era o domínio da terra, hoje o domínio da terra e do espaço. O consumismo que existe atualmente é uma miragem, uma ilusão de poder, por meio da qual se faz com que todo mundo acredite que, a medida que se possui coisas, se vai adquirindo o estatuto de proprietário. O sentimento de divindade amparado nos livros sagrados contém a ideia do ser único, especial e diferente do resto e, sobretudo, superior aos demais. A partir deste sentimento, se estabelece facilmente nas relações a dinâmica do domínio, impregnada de utilitarismo e discriminação. No momento em que o homem se instala na divindade, ele pode dizer quem está e quem não está, quem serve e quem não. Decidindo, assim, que os homens são os iguais e que as mulheres somos um coletivo a dominar, que os homens são donos de seus corpos e também dos nossos, perpetuando assim a ideia de que as mulheres não somos donas de nossos corpos. Para a mudança civilizatória é necessário desmantelar esta ideia e este sentimento de propriedade, porque eles são os fundadores deste sistema fracassado e à beira do colapso. Entretanto, este sentimento de propriedade, este sentimento desvirtuado que nos impuseram, também traz consigo a necessidade humana de pertencer, de interagir com nosso entorno que é o rasgo mais profundo de respeito pelo que nos contém. Ao mesmo tempo em que existe o domínio, também existe a necessidade de se entender como parte de um sistema. A busca de um porquê para os homens terem construído esses vínculos de domínio, ou a necessidade de encontrar um princípio, está dentro da lógica linear e patriarcal em que estamos inseridas, que precisa ter um deus e uma origem estabelecida que legitime sua autoridade. Mas se realmente optamos por uma mudança civilizatória, o que importa é a gente se dar conta das potencialidades que temos os seres humanos de mudar a cultura. Para isso, a mim me basta fantasiar meu futuro, para começar a mudar, para saber que tenho a potencialidade de construir outro relato e não buscar explicacões que me levem a pensar que o mundo e os seres humanos são assim, que é impossível pertencer a ele sem destruí-lo e sem abusar uns dos outros. O patriarcado constrói seu sistema de domínio violento – não existe domínio sem violência – a partir do mundo afetivo, ou seja, mal começamos a descobrir, a estabelecer relações com nosso corpo e com nossa mente. Unicamente sobre a base da experiência consigo mesmas, com nosso corpo e com nossa mente, podemos construir um sistema para nos relacionarmos com os demais. Uma vez que a relação básica é de domínio – dominar o corpo declarado culpado –, sem dúvida que todas as relações que construirmos estarão impregnadas do signo da culpabilizacão. Se os nossos desejos são de fazer um mundo melhor, pra conseguir isso temos que mudar forma de nos relacionarmos. Quando conseguirmos isso, logo iremos caminhando em direção a uma civilização distinta. Minha utopia é mudar do sistema de domínio pra um sistema de colaboração. Construir uma sociedade que se olhe a si mesma, que se organize e faca suas próprias leis, que tenha como base as indivíduas e os indivíduos sexuados, completos e em si mesmos, e não a família como é atualmente. Para instalar uma nova cultura, uma nova civilização, devemos romper com o conceito de propriedade patriarcal e propor um senso de responsabilidade e cuidado das cosas e da natureza, para que elas vivam e se mantenham. Se a espécie humana tem a terra para habitar, deve recuperá-la para sentir a correspondência que existe com ela, para destruir o mito de que foi deus que a criou e parar de acreditar que os recursos são infinitos e que milagrosamente durarão para sempre. Devemos criar uma relação de ida e volta, de dependência com a natureza e abandonar o sentido de propriedade em que alguns seres humanos, em especial as mulheres, pertencem a outros. Temos que compreender que se o espaço que habitamos morre, nós também morremos com ele.
 Propriedade e domínio na família, o amor como elemento fundamental
 No patriarcado, os vínculos que o ser humano estabelece com a natureza se baseiam no desejo de divindade, de transcendência e pertencimento. A capacidade de procriação acarreta, nesta cultura, em propriedade e domínio, se acredita que a sexualidade reprodutiva dos humanos deve se dar através do “amor”. A união deste amor se consagra na consanguinidade, que é a producão de filhos. Como o vínculo na família é sanguíneo, esse vínculo é visto como um ato da natureza. Desta maneira, a família é “a” natureza e constitui o núcleo básico da sociedade. O trio propriedade, domínio e amor – entre aqueles de mesmo sangue – fazem da família um modelo imutável, que se instala como natureza e verdade, mas se rastrearmos as origens da ordenação familiar veremos que ela nasce na antiga Grecia e a família nuclear (contrato matrimonial) como a conhecemos hoje data do século xviii.
O sexo, o erotismo, a propriedade e o amor
A forma com que nós mulheres nos erotizamos não é a mesma que a dos homens, porque ambas são construções culturais. O sexo somente “produtivo” é o que geralmente corresponde à mulher, na medida em que sua sexualidade está ligada a reprodução e ao amor. Inclusive, em algumas culturas, as mulheres que têm sexo sem amor são julgadas. Este erotismo ligado ao romântico implica que se tenha sexo sem conciência da sexualidade. A erotização, portanto, é uma construção cultural que se alimenta de modelos: as mulheres se erotizam com homens que tenham forca, que tenham poder e que, tanto física como socialmente, representem essa forca e esse poder. O erotismo muda conforme os tempos, as culturas e vai se acomodando ao que está na moda. A sexualidade tem um sentido simbólico muito importante no exercício do poder do patriarcado, porque através do sexo se consolida de maneira inconsciente a propriedade sobre os seres humanos, já que está na ordem simbólica do amor romântico-amoroso, que é a propriedade do ser amado. O senso de propriedade não é uma programação biológica. Nós humanos não viemos programados com um sistema como os animais que, mesmo quando são inteligentes, não conseguem mudá-lo. O que distingue o humano é a capacidade de pensar conceitos, símbolos, valores. Os humanos de alguma maneira mudamos, os animais não. Eles têm época de cio e um sistema programado de reprodução, enquanto os humanos têm uma parte biológica e uma parte que se constrói a base de ideias. A espécie humana é a única que pode se erotizar durante toda a vida e isso se dá por conta da participação da mente. O sexo está impregnado de propriedade, e do amor unido ao sexo surge uma relação absoluta, erroneamente a partir do mundo dos instintos e dos sentimentos e não a partir da razão. Se apresenta como um sentimento desconectado de nós mesmas em que perdemos a cabeça, fragmentando-nos ainda mais dentro dos cortes-conflito que o patriarcado instala. Este conceito romântico das relações se instala como uma reação ao processo de liberalizacão que trouxe consigo a Revolucão Francesa, impulsionado pelas mulheres nos Salões das Preciosas. No século xviii, a Revolucão francesa abre um mundo às mulheres, que exigem seus direitos, e emerge o conceito de democracia e de cidadania. Posteriormente, no século xix, com a industrialização, surgem dois fenômenos: o auge das cidades e do cidadão. Com a industrialização os homens se integram às fábricas e a família estendida – agrária – entra em processo de extinção. Aparece a classe trabalhadora, na qual a mulher urbana, preservadora dos valores tradicionais, é a responsável pela família e pelos filhos durante o tempo em que o marido está na fábrica até a hora em que regressa à noite. Assim, enquanto os homens fazem sua vida nas tavernas, onde fazem alianças e formam sindicatos, as mulheres ficam isoladas no lar, perdendo a socialização que tinham adquirido na época agrária. É o século em que se passa pra mulher a responsabilidade – como ocorre na família burguesa – de manter e reproduzir os valores da cultura patriarcal. O outro fenômeno que surge é a reformulação da perspectiva da Igreja a respeito da Virgem Maria, a quem declaram Santa, iniciando, como aponta Touraine, o século mariano. Sob a figura da Virgem Maria se exalta a maternidade, o que implica que a mulher se mantenha no lar como responsável por ele. O romantismo interpreta a vida pelo romântico-amoroso, sendo a fantasia um romântico em que a mulher perde a cabeça e a virgindade pelo amor; ela é vista como alguém que não consegue raciocinar e colocada no âmbito da irracionalidade e dos sentimentos. A maternidade, o amor a um homem ou o amor aos filhos, prendem as mulheres num romântico-amoroso enganoso, que é um poder falsamente adquirido que mantém as mulheres oprimidas, porque este romantismo da um sentido heróico à feminilidade. Hoje, em pleno século xxi, somos herdeiras deste romantismo amoroso que, com o conceito cultural da maternidade e da construção do feminino, se tornou a cultura vigente. É um romântico-amoroso que se estende a todos os âmbitos da vida. A busca da felicidade dentro do sistema patriarcal – marcado pela possessão, pela ideia de que todo mundo deve se amar e pela promessa de que todos seremos felizes – se reflete no social, no político e no público, ao colocar na base das relações o amor. Hoje, o amor como obrigatoriedade está vigente e goza de boa saúde. O romântico-amoroso instalado na época do romantismo continua sendo o mandato atual: amar a todo o mundo e, sobretudo, reconciliar-se. Reconcilie-se ou te mato parece ser a ordem do dia. Na reprodução humana, esse ato de “amor genuíno”, se joga com os poderes de homens e mulheres. Os homens se apropriam do corpo da mulher para controlar os nascimentos e as mulheres não querem renunciar à maternidade. Praticamente todas as mulheres querem ser mãe, porque através da maternidade se constitui e se alcança o “ser”. Por essa razão se crê, de pé junto, que a maternidade é pela vida, que é a única maneira de se projetar como pessoa e que, como é o pequeno poder que as mulheres conseguem ter nesta cultura, se negam a renunciar a ele. O instinto de conservação da espécie é um argumento para controlar o corpo das mulheres em sua capacidade reprodutiva. Mais uma vez se instala a reprodução nos interesses do mundo masculino e do irracional. A explosão demográfica dá conta da perda de proporção que como espécie alcançamos e da perda do controle da maternidade por parte das mulheres. O androcentrismo cego não quer ver a deterioração da qualidade de vida de mais de 70% da população mundial. Ao contrário, com orgulho crê que com sua tecnologia pode alcançar o infinito, no entanto, a superpopulação não só não garante a sobrevivência da espécie humana e de todo o planeta, como tampouco uma boa qualidade de vida.
A culpa e o medo como instrumentos de controle do desejo de liberdade e da utopia
Neste momento, alguém consegue imaginar um mundo sem culpa? Alguém consegue imaginar um mundo sem medo? Existem medos de verdade, mas eles não são castradores nem determinam uma vida, mas são medos que se consegue manejar e viver bem com eles. São alertas vermelhos que se acendem pra que a gente se detenha. Podem ser manejados porque os conhecemos, são medos que estão relacionados com a conservação da vida e com o instinto de sobrevivência. Mas também existem os medos de mentira e que não conseguimos lidar: o juízo final, a reencarnação, o inferno, a reencarnação num animal de trabalho com um dono mau-tratador de animais. E não conseguimos lidar porque são ideias construídas sobre a realidade. O medo da morte é de verdade, mas é diferente de construir ilusões que negam a própria morte, que negam a realidade e a prendem numa construção religiosa de ressurreição e vida eterna. Se se prende a morte, se prende a vida, porque se organiza esta construção como uma verdade que administram os que oferecem o paraíso e o inferno. Se trata de uma administração com a mesma lógica de domínio do sistema patriarcal ao qual pertence: eles abrem a porta da felicidade eterna e eles a tutelam. Quem administra a morte administra a vida, porque se vive em função do que vai acontecer depois da morte em vez de viver a vida. Os administradores da morte nos dizem: “Eu te abro a porta se você, em sua vida, se dedicar a me obedecer e a me adorar”. Os mesmos que administram a morte instauram a culpa porque, para que este sistema funcione, não basta o medo de uma realidade que não podemos controlar. Essa é a função do pecado original e de assinalar o corpo e sua sexualidade como culpáveis: no momento em que se tem a vida se tem a culpa, e no curso da vida precisa limpar essa culpa para chegar à “bilheteria” do paraíso. A culpa se instala, então, estruturando o bem e o mal e tornando-os praticamente inalcançáveis. Se se constrói uma cultura que fixa a ideia da culpa na existência em si, o corpo culpável – uma vez que se chega à vida por meio de um ato sexual pecaminoso– tem que prestar contas. O medo e a culpa constituem um sistema funcional ao poder. O trabalho, que é a forma pela qual o ser humano assegura sua sobrevivência no sistema patriarcal, está impregnado de culpabilidade. O modo de produção e o direito à vida estão marcados pela culpa. Se os consideramos sob o enunciado: “é preciso ganhar a vida”, que traz consigo o ato de pagar pela existência, evidentemente que temos um modo de produção em que o trabalho traz implícitas a dor, a exploração e a injustiça. O modo de produção, o que imaginamos que temos que fazer como humanidade para comer, é um produto da cultura e implica no domínio da natureza. Se a cultura é de domínio, o modo de produção vai exercer o domínio sobre os outros e sobre a natureza, portanto, será depredador como a cultura que o contém.
Outra sociedade: não ter um modelo
A ideologia é o produto de um sistema cultural baseado em todo tipo de bíblias que impregnam o sistema e configuram, como ideologia, um modelo a aplicar e ao qual aderir. Ao fazer isso, estamos executando um ato autoritário com nós mesmas, porque num modelo pré-estabelecido não se permite um processo de mudança em que, a medida que se vai avançando, possamos nos desprender do anterior para criar outro novo. O desprendimento é parte importante do processo de mudança de uma cultura pra outra. É fundamental não ter um modelo e se conectar com as energias não condicionadas, o outro é a mansedumbre dos crentes: nas religiões e seus deuses, na política e sua democracia, no gênero e sua capacidade de igualdade, na esquerda e sua classe trabalhadora, nos anarquistas e seu caos. E poderíamos seguir completando a lista de crentes amparados em causas únicas e absolutas. Por outra parte, o amor como modelo é uma imposição, o que significa que se eu não amo todo o mundo, e não tenho esta dimensão “divina” da capacidade de amar, estou fora do que esse modelo considera humano, que na verdade é desumano porque o amor obrigatório o é. Custa muito se desprender do modelo, já que, ao ficarmos sem ele, nos paralisamos e estamos de fora. Mas quando se está de fora tua imaginação se projeta e se começa a fantasiar um futuro com a plenitude de tuas potencialidades. A colocação do pós-modernismo a respeito de que as ideologias se acabaram, de que a história acabou e de que a capacidade do ser humano deve estar sujeita ao pragmatismo realista e empreendedor em que tudo é negociável (com muito amor), é também uma ideologia, porque são ideias que vão se unindo e constituindo um modo de construir cultura, Estado, relações, sistema. Como aponta Agnes Heller, as ideologias são essencialistas e fundamentalistas porque têm uma maneira de ver e perceber a vida como única e imutável. Por isso, o pós-modernismo é uma ideologia essencialista e fundamentalista. No momento em que se quer fantasiar as utopias, temos de ter muito nítido que elas são fantasias que dão pistas, que a fantasia não é uma realidade, mas informa. A Gestalt diz que se a gente vive nossas fantasias como se fossem realidade, nos confundimos e não vivemos nossas vidas. Imaginar um futuro é um jogo ilusório, não está acontecendo. Mas se a gente fantasia, a gente se informa de potencialidades possíveis, de pistas por onde ir transitando. A fantasia, que nos notifica das capacidades de mudança que temos como pessoas e como sociedade, também avisa que o que estamos vivendo não é o que queremos. Se eu fantasio em ter um amor sem propriedade, sem desejo de entrega total, em harmonia, isso me indica que eu não gosto do que tenho e que é possível chegar a amar sem possessão. Creio que todos temos a fantasia do amor sem possessão. Imagino a possibilidade de amar sem necessidade de entrega total e sem o desejo de que o outro me pertença, o que implica em desarmar todo o sistema dentro de mim mesma e seus pequenos poderes, ou seja, de desmantelar o patriarcado interno. Existe a ideia do ser humano como um animal que está sempre em luta com os demais e que nessa luta ganha o mais forte. É a ideia essencialista do patriarcado sobre o ser humano: todos somos violentos, a essência da vida é a luta violenta por ela. Minha fantasia de outra cultura não é o mundo feliz de contos infantis. Acredito que vai haver dor, acredito que vão ocorrer conflitos entre as pessoas, inclusive no espaço íntimo. Alguém pode ter desejos de domínio sobre sua companheira, por exemplo, mas o importante é não negar isso, mas conhecer esse sentimento pra que ele não se apresente como sistema, porque com nossos desejos de mudança também vão mudando nossos desejos. Pra gente é difícil imaginar não ter o sacrifício incorporado às relações amorosas, porque essa é a nossa história. Não quero uma cultura baseada no amor, quero uma cultura baseada no respeito, na legitimidade da existência do outro. Minha proposta se sustenta na cooperação e não no amor. Uma proposta cultural baseada no amor, como a atual, pode cometer os maiores crimes. Por isso, é importante a colaboração como responsabilidade, como respeito à dignidade do ser e não como amor. Na utopia, o espaço de trabalho vai ter muito mais de realização pessoal e coletiva de criação. Na cultura da colaboração, a gente vai decidir se lava uma xícara por obrigação ou por colaboração com a outra, portanto, o espaço de liberdade é distinto. Em todo trabalho tem uma parte que a gente gosta mais que outra e outras que a gente não gosta definitivamente, e isso vai continuar sendo assim inclusive na utopia. Mas a gente vai ter muito mais responsabilidade pelo que escolhemos como trabalho, porque num mundo de colaboração se tem mais liberdade, não por obrigação, mas por um ato consciente do humano. A colaboração que eu estou falando se relaciona, erroneamente e exageradamente, com o amoroso. No entanto, a cooperação tem a ver com a responsabilidade de vida, onde o ser humano será mais saudável, sábio, equilibrado e sem culpa. Imaginar um mundo sem culpa é imaginar um mundo com pessoas mais saudáveis. Por outro lado, a cultura patriarcal que estou falando não produz sabedoria, nem equilíbrio, nem saúde, mas sim medo, confusão, desconfiança e agressão. Se a gente muda em nós mesmas o senso de propriedade podemos ressimbolizar não só o masculino e o feminino, mas também o conceito de relação, de produção e de reprodução, assim será possível, então, inaugurar outra civilização-cultura.
Margarita Pisano
Tradução: Gabi Estamira
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estereótipos de gênero

Gente, vocês já pararam pra pensar que, se conseguirmos libertar o sexo feminino da exploração material que sofre do sexo masculino (reprodutivo, afetivo e laboral), não haverá necessidade em manter os estereótipos de gênero (que servem para demarcar a hierarquia sexual, sendo feminilidade característico de submissão e masculinidade de dominação) e no fim, todo mundo vai se ver livre pra ser como se é, sem as imposições limitadoras de gênero?
No fim, o que todo mundo quer é praticamente a mesma coisa, a questão é que não podemos ignorar que ainda vivemos num sistema onde pessoas do sexo feminino sofrem misoginia independe de como se expressam, e que, por mais que alguém do sexo masculino sofra quando quebra as regras de gênero, jamais sofrerá a mesma exploração material que sofrem as pessoas do sexo feminino. Fora que quando se afirmam mulheres para poderem performar feminilidade, acabam por reforçar que ser mulher é ser feminina, quando esses esteriótipos são uma ferramenta de submissão impostas diariamente para pessoas que nasceram com sexo feminino. É doloroso.
Por isso o feminismo radical confronta as ideologias de identidade de gênero. Porque ele não acredita que as pessoas não possam se apropriar de outros esteriótipos, mas é contra a ideia de relacionar QUALQUER ESTERIÓTIPO com qualquer gênero.
Não vamos nos limitar, porém não podemos deixar de problematizar o que cada coisa significa em seu contexto. Quando alguém quer se apropriar da feminilidade, a escolha é individual, mas por mais que a pessoa se sinta bem com ela, a feminilidade ainda representará submissão num contexto mais abrangente, e reafirmar que se é mulher porque se identifica e se sente confortável com feminilidade é reforçar a submissão de todas as pessoas nascidas do sexo feminino aos esteriótipos de gênero mais limitadores.
Ninguém está proibindo as pessoas de se vestirem como quiserem, mas não é revolucionário rerrotular as pessoas para que haja tal “liberdade”. Lembrem-se de que o pessoal é político e que a busca diária é por um alinhamento de nossos posicionamentos políticos com nossas vidas.
Acreditem, é possível quebrar estereótipos de gênero sem boicotar a libertação do sexo feminino da exploração material que o acomete. E no fim, todos que querem se ver livre das amarras de esteriótipos serão beneficiados e só se sentirá prejudicado quem tem interesse na permanência dessa exploração da classe sexual feminina.
Resistimos!

por Camila Berka

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Sejam bons amigos

Quando uma amiga acabar um relacionamento abusivo, excluam seu abusador. Não se permitam ser pontes de contato. Não permitam que ela se bata com seu algoz só porque você não tem motivos pessoais pra excluir ele. Você tem. Você não pode ser neutro quando alguém é abusado. Se vocês são amigos, seja um suporte.
As mulheres são abusadas e seus abusadores continuam nas mesmas mesas, com os mesmo amigos, sem nenhum peso na consciência, enquanto elas tem que se isolar e passar por isso sozinhas. As mulheres tem vergonha de pedir pra que amigos parem de ser amigos do estuprador/abusador delas, e os agressores não tem vergonha de terem agredido.
As mulheres sentem vergonha por terem sido estupradas e tem medo de contar pros amigos porque tem medo de que eles avisem o violador que ele foi denunciado. Vocês tão criando isso. Essa idéia de que manter uma brotheragem escrota é mais importante do que confiar numa pessoa que sofreu abuso. Vocês estão ameaçando a segurança de mulheres. Física e emocional. Vocês tão vendo que algo ta acontecendo.

E vocês tão mantendo esses caras na mesa.

Vocês tão permitindo que eles não se questionem nem por um segundo se, talvez, por acaso, fizeram algo errado. Se fizessem algo errado, os amigos não estariam ali, afinal.

E a mina ta sozinha. Como se tivesse feito algo errado.

Se perceber alguém se afastando dessa forma ou evitando programas no qual pessoa x pode estar, pergunte o que aconteceu.

Sejam
bons
amigos

por Lara Luccas

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