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Crítica ao determinismo biológico para sexualidade

Aqui não vou apresentar comentários meus, vou apresentar uma das coisas que mais moldou minha visão sobre como a sexualidade humana pode ser construída num sistema milenar patriarcal onde a heterossexualidade é um interesse masculino e um sistema político de exploração – e não somente uma “orientação sexual inata”. Aqui estão trechos de crítica ao determinismo biológico da sexualidade, que eu considero pertinentes, do livro “A Heresia Lésbica” de Sheila Jeffreys, lésbica radical assumida desde os anos 70. O capítulo é “A Lésbica Essencial”, que fala sobre como há tentativas de determinar o que é uma “lésbica de verdade”. Ainda não há versão oficial traduzida deste livro da Jeffreys, porém há a tradução de um grupo de feministas (Monalisa Lemura me informou ❤ ) e traduzi essas partes par apresentar aqui e espero que sirvam de algo para outras mulheres, lésbicas ou não. É relativamente comprido mas muito informativo, a Jeffreys é uma teórica e historiadora ótima. Outra peça que me ajudou muito foi o artigo da Adrienne Rich sobre Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica (que possui tradução). Se eu pudesse resumir esse texto ótimo em poucas frases, seriam: “Essa combinação [biológico + socialização] é um recordativo da velha ideia sexológica de que homossexuais eram divididos entre invertidos e pervertidos. Invertidos eram os ‘congênitos’ que não conseguiam se controlar e mereciam simpatia, já os pervertidos tinham deliberadamente escolhidos serem maus.” ————————————————————————————————-
Em 1970, ativistas de libertação gays e lésbicas feministas opunham a ideia de que orientação sexual era biologicamente determinada.
Os anos sessenta e setenta fora as grandes décadas de construcionismo social. Teóricos sociais se opunham vigorosamente a argumentos biológicos sobre inferioridade racial, diferenças de gênero, doenças mentais.
Foi percebido que explicações biológicas providenciavam a base científica para uma engenharia social conservadora. Argumentos biológicos, argumentos de natureza, podem ser usados para afirmar a adequação e a inevitabilidade da subordinação da mulher, da desigualdade racial, da hegemonia heterossexual e de drogas e instituições para neuroatípicos. A certeza do construcionismo social foi abalada nos anos oitenta pela aderência de algumas lésbicas e gays a uma nova onda de determinismo biológico para explicar orientação sexual. Algumas teóricas lésbicas têm até começado a afirmar que o roleplay bofe/lady e os estereótipos de masculinidade e feminilidade são naturais, e até inevitáveis, para lésbicas.
A crença na biologia vem majoritariamente, de teóricos gays. Isso talvez possa não nos surpreender já que ativistas gays não aderiram ao slogan: “qualquer homem pode ser gay”. Políticos gays tradicionalistas continuaram a depender da ideia de que homossexualidade deve ser tolerada porque homens gays “não conseguem se segurar”.
Eles [gays] eram uma minoria biológica oprimida, ou se não era culpa da biologia, então tinha “definitivamente algo” que, pelo menos, tornava homens gays inevitavelmente diferentes. Lésbicas frequentemente ficavam chocadas em descobrir quão profunda era a dependência de homens gays com a biologia, por vezes, mesmo aqueles de políticas progressivas. Enquanto [eu] dava uma aula de estudos lésbicos e gays nos anos oitenta, percebi que os alunos gays expressavam mais rapidamente alguma crença na biologia. A maioria das alunas lésbicas expressava total rejeição à ideia. As lésbicas muitas vezes tinham sido heterossexuais, esposas e mães, e frequentemente não tinham pensado em amar mulheres até algum tempo após suas adolescências. Uma explicação biológica não teria feito sentido nenhum para suas experiências ou suas políticas.
A diferença considerável sobre a [crença em] teoria biológica entre gays ativistas e lésbicas feministas ficou evidente em uma campanha no Reino Unido contra o Artigo 28 do Ato Governamental de 1988. Porta-vozes gays proeminentes foram à televisão para argumentar que a emenda contra a “promoção da homossexualidade” era sem sentido pois a homossexualidade era inata e não poderia ser promovida. Ativistas lésbicas estavam embasbacadas. Isso era o oposto das políticas lésbicas feministas e, ao julgar pelo debate da emenda na Câmara dos Comuns, parecia que os deputados conservadores estavam alarmados justamente pelas lésbicas feministas e seus esforços para promover a lesbianidade. Parecia ter uma diferença política fundamental aqui, e mesmo que alguns ativistas gays fossem críticos desse posicionamento biológico, esses não estavam em ascendência.
Em 1991, as descobertas científicas do Dr. Simon LeVay, caracterizado como um “ativista gay”, foram publicadas nos Estados Unidos. LeVay estudava os cérebros de homens gays que morreram devido a Aids e de homens que diziam não ser gays e morreram pela mesma causa. Ele descobriu que uma área minúscula do hipotálamo estava, em média, duas vezes maiores em homens heterossexuais em comparação com mulher heterossexuais e homens gays. Ele sugeriu que níveis hormonais variantes antes do nascimento “programam” o hipotálamo tanto para a heterossexualidade quanto para a homossexualidade. Desde então, outro estudo da Universidade de Medicina da Califórnia aparentemente tem apoiado sua descoberta. LeVay vê seu trabalho como realmente positivo para terminar a discriminação contra gays. Ele sempre acreditou que a homossexualidade fosse biologicamente determinada e se comprometeu a provar isso para que discriminação contra gays pudesse ter oposição na base de que gays eram condenados pela natureza a ter seu comportamento, e deveriam ser tratados com a piedade que deveria ser dada a qualquer grupo que não pode se controlar. Isso é um argumento antigo que remonta à virada do século. É uma ideia que não se apaga facilmente. Mas ela não se encaixa com a experiência lésbica ou com a teoria lésbica feminista. LeVay ainda não teve acesso ao cérebro de lésbicas mas está convencido que encontrará em seus cérebros semelhanças aos dos homens heterossexuais na área crucial.
É significante que LeVay também acredite que a biologia também é responsável pelas diferenças comportamentais entre homens e mulheres. Ele acredita que mulheres são mais verbalmente competente que homens e que homens são mais competentes espacialmente do que mulheres, por diferenças no cérebro. Ele maneja associar as diferenças entre cérebros com o fato de que homens gays são “menos destros do que homens héteros”. LeVay nos mostra que argumentos biológicos sobre “genes gays” pode nos levar diretamente a argumentos biológicos que justificam a opressão da mulher.
Após uma boa fundamentação em tal batalha, não é possível para lésbicas feministas serem favoráveis a explicações biológicas de homossexualidade. Homens gays podem, pois sua liberdade enquanto homens não depende, da mesma forma, da luta contra biologismo.
A “diferença” das mulheres, ou “feminilidade”, tem sido explicada na teoria lésbica feminista como uma invenção masculina, e a sujeição de mulheres à feminilidade como uma projeção das fantasias masculinas nas mulheres. […]
Feminilidade tem sido experienciada por lésbicas feministas simplesmente como uma restrição bruta da liberdade, como uma tortura. Lésbicas tem sido mais livres pra abandonar seus preceitos e expressar rejeição total.
Joan Nestle, a líder protagonista do novo roleplay lésbico, afirma categoricamente que “eu acho que a frase ‘toda mulher é uma lésbica em potencial’ não é mais útil”. Ela diz que era simplesmente um “dispositivo retórico” e que agora é hora para lésbicas e mulheres heterossexuais simplesmente reconhecer suas “escolhas” distintas. Lésbicas devem agora “parar o bullying em forçar mulheres a posturas sexuais, em parar com a suposição que só lésbicas fazem escolhas”. O “bullying” a que ela se refere provavelmente compromete ao trabalho teórico excitante de lésbicas feministas como Adrienne Rich e Monique Wittig, que analisam heterossexualidade compulsória como instituição política.
Ela diz que “nós podemos depender” das histórias da homossexualidade ocorrer em famílias “para provar que sim, um dos componentes é nosso DNA”. Parece surpreendente que o fato da vasta maioria de lésbicas e gays terem pais heterossexuais não abala o apelo do argumento hereditário. Interessantemente, ela quer usar uma combinação de explicações usando tanto a [explicação] genética pra umas e a “escolha” pra outras. As de variedade genética são, aparentemente, auto-identificadas: se você diz que é uma “genética” então é. Essa combinação é um recordativo da velha ideia sexológica de que homossexuais eram divididos entre invertidos e pervertidos. Invertidos eram os “congênitos” que não conseguiam se controlar e mereciam simpatia, já os pervertidos tinham deliberadamente escolhidos serem maus.
tradução: Tamiris
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ativismo bissexual e bifobia

eu não acredito que exista uma opressão estrutural contra pessoas bissexuais. isso não quer dizer que eu não acho que bissexuais tenham especificidades, que não sofram absolutamente nada, porque opressões não se tratam de sentimentos, e sim de realidade material, de não ter acesso a determinados espaços, de ter direitos negados.

quando se fala em bifobia, é dito que homens e mulheres bissexuais sofrem exatamente as mesmas coisas, são oprimidos de maneira igual, e eu não posso concordar com isso. mulheres bissexuais sofrem com a fetichização de suas relações quando se relacionam com outras mulheres, assim como lésbicas, são “convidadas” a participar de menage, são vistas como as que ficam com qualquer pessoa, são tratadas como indecisas e sua sexualidade está constantemente em cheque. homens bissexuais não compartilham das mesmas pautas que mulheres bissexuais. homens bissexuais não sofrem misoginia. se considerarmos que a heterossexualidade é compulsória, homens, ainda que bissexuais, se beneficiam desse sistema de exploração, se encontram no nível acima da hierarquia homens~mulheres. a heterossexualidade serve somente a homens, confere poder a homens, e as mulheres que podem vir a se relacionar com eles, colhem algumas migalhas sociais, mas continuam sujeitas a estupro dentro de casa, a sofrer manipulação emocional, a sofrer agressões físicas e psicológicas do companheiro, a ter sua integridade constantemente em risco. o que para homens bissexuais pode ser um fator limitador, para mulheres é violência, tanto com um homem quanto com uma mulher (nesse caso, por parte da sociedade).

dito isso, sobre o que é difundido como especificidades bissexuais, que citei acima, não deveria ser tratado como bifobia, porque mulheres lésbicas também passam por essas pressões sociais, então como caracterizar isso como especificidade bissexual quando um outro grupo de mulheres compartilha dessa mesma vivência? a sociedade agride mulheres quando se relacionam com outras mulheres, porque o esperado é que mulheres se relacionem com homens somente. mulheres que se relacionam com outras mulheres sofrem lesbofobia e não bifobia.
uma mulher lésbica não tem poder para oprimir uma mulher bissexual, quem dirá um homem bissexual. não existe hierarquia da sexualidade entre mulheres porque nenhuma mulher tira proveito e se beneficia da sexualidade da outra socialmente/coletivamente. dizer que uma lésbica que prefere não se relacionar com uma mulher bissexual por autocuidado é bifobia, é lesbofóbico. lésbicas não oprimem bissexuais. lésbicas podem magoar bissexuais, podem ferir sentimentos de mulheres bi, podem ter um relacionamento abusivo com mulheres bissexuais, mas isso não faz dessas lésbicas bifóbicas. é preciso fazer autocrítica quando mulheres lésbicas acusam mulheres bissexuais de falta de cuidado, de colocá-las em segundo plano por causa de homens, de fazer com que elas tenham que lidar com possíveis relações heterossexuais que bissexuais venham ter. novamente, a heterossexualidade é compulsória, ela está em todo lugar, a todo momento nos empurram para ela, e resistir a essa pressão é custoso. é “natural” tender a priorizar relacionamentos heterossexuais porque mulheres são criadas pra isso, e pode ser que nem se consiga perceber esse tipo de situação, já que é naturalizado.
mulheres não possuem privilégio heterossexual, mas existe um abismo de diferença entre vivências de mulheres hetero, mulheres bissexuais e mulheres lésbicas.

bissexuais possuem especificidades, e por isso devem ter um espaço para tratá-las, mas a autocritica se faz necessária ao ativismo bissexual, que precisa ouvir o que outras mulheres tem a dizer  e tentar construir de acordo com a realidade material, coletivamente, e parar de basear ativismo apenas em sentimentos e individualidades.

Gabi Borghi

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Thammy Miranda sempre sofreu lesbofobia e o porquê isso não deveria ser apagado

Thammy desde novinha foi uma vítima da sociedade misógina: hiperssexualizada, exposta ao fetiche masculino e cercada por uma mídia que objetifica mulheres. Mais tarde, quando assumiu sua lesbianidade, sofreu o duplo massacre: primeiramente por gostar de outras mulheres, consequentemente, não estando disponível para os homens para qual sua imagem foi construída, e também por subverter todos os padrões do ”tornar-se mulher”: através da estética ela disse um NÃO ao padrão social imposto a todas as mulheres. No entanto, uma mulher que se nega a se portar como o patriarcado espera não se torna um homem, porque o gênero feminino não está em oposição ao masculino. Ter cabelos curtos e não usar vestidos não impediu que Thammy continuasse sofrendo misoginia, porque a sociedade ainda assim a via como uma “mulher pervertida”, ”mulher sem vergonha”, ”sapatona”, ”mulher suja”, “maria macho”. Sendo que ela apenas se negou a reproduzir esteticamente os padrões do gênero que lhe foi imposto. Imagina o tanto de misoginia e lesbofobia que essa menina ouviu e internalizou. Até chegar no ponto que pensou: ”nossa, realmente, deve ter algo de errado comigo”. No entanto, errada está essa sociedade heteronormativa que faz com que até homossexuais entrem nessa lógica do macho/fêmea ou /passivo/ativo da relação. Como se os seres humanos fossem polaridades. Tudo bem, vivemos no santuário neoliberal onde o pessoal deixou de ser político e a individualidade é sagrada, e realmente eu não tenho nada a ver com a vida da Thammy e que o que importa é ela estar feliz (feminismo deboísta, não?), mas não problematizar isso é um erro tão grande, porque não questiona o status quo da nossa sociedade que mobiliza uma pessoa a acreditar que ”nasceu em corpo errado”, quando na verdade não existe corpo certo e errado, mas sim um discurso social opressor.

por Débora Ramos

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